20 de junho de 2021

Alcácer Quibir - Versão 2.0

 

El-rei Dom Sebastião, por alcunha o Desejado (e também o Adormecido), herdeiro do trono de Portugal e dos Algarves aos três anos de idade, ocupou-o e assumiu responsabilidades governativas com a madura idade de catorze, depois de ter deixado as fraldas e a protecção da regência de sua avó, D. Catarina de Áustria e, depois, de seu tio-avô o Cardeal Henrique de Portugal. Aluno brilhante das ciências da guerra e do mata-mouros, el-rei desapareceu em combate, aliado ao sultão Mulei Maomé, à frente de um glorioso exército de cerca de 24.000 homens e de 40 (quarenta, por extenso) canhões, no norte de Marrocos, perto da cidade de Alcácer-Quibir, entre Tânger e Fez, a 4 de Agosto de 1578, em plena época  estival e com as praias pejadas de banhistas, de guarda-sóis e de vendedores de bolas de Berlim.

Até ontem, infelizmente, não tinham as condições meteorológicas facilitado a formação do cerrado nevoeiro que permitisse o regresso a casa de el-rei, centenariamente saudoso dos mimos das amas e do bucolismo da Tapada de Mafra. Depreendia-se, e teve-se finalmente a certeza, que el-rei teria sido traído, no chinfrim da peleja, por qualquer defeito de fabrico na rica armadura que envergava para a batalha, ricamente tecida em organdi azul e debruada a fio de nastro lilaz de qualidade extra, expressamente fabricada e fornecida pelos celebrados armazéns Harrods, de Knightsbridge, Londres. Do mesmo modo tinham, até à data, resultado infrutíferas todas as tentativas para exumar Dom Afonso Henriques do seu descansado túmulo em Santa Cruz de Coimbra, no sentido de investigar antecedentes e de apurar responsabilidades que justificassem a tragédia Castro e a perda da independência para Castela de onde, como se sabe, não sopra nem bom vento nem bom casamento.



Finalmente, por imprevisibilidades do sorteio e de uma peste pandémica, el-rei surgiu ontem na capital bávara de Munique, à frente de uma garbosa esquadra de infantes, capazmente coadjuvado pelo ilustre engenheiro Fernando, nobre e digno descendente de el-rei com a mesma graça que, em idos de Março, foi o mestre-de-obras da inexpugnável muralha que ainda hoje protege o inóspito monte da Penaventosa e a viela do anjo, de onde houve nome Portugal. Imponente e verdejante era o novo campo de batalha, ricamente engalanado para o torneio, com faixas de cores garridas e áudio quadrifónico, com o potenciómetro demasiado aberto, que muito dificultou a audição do silvo do apito e das comunicações wi-fi do var. E correu tudo mal, que o mesmo é dizer que correu tudo bem para o exército inimigo, que não teve sequer que empenhar-se a fundo para levar de roldão e por arrastamento, pela segunda vez, sem apelo nem agravo, el-rei, o seu intrépido condestável, os chefes de quina e os lusitos de olhos esbugalhados de espanto e tementes a Deus.

Está el-rei desaparecido de novo, perdido no ardor da peleja, batendo-se com a sábia e valerosa valentia dos seus maduros catorze anos, e o facto comunicado às autoridades competentes, que prosseguem as buscas por terra, mar e ar, de dia e de noite, sejam quais forem as previsões do tempo, a sorte das cartas, os juízos dos astrólogos e os conselhos dos cartomantes. De emergência foram convocados ao vale do Jamor os restos mortais dos senhores Galileu Galilei e Albert Einstein que, de repente, descobriram a quadratura do círculo e detectaram a inclinação de um cagagésimo de grau no terreno de jogo, igualmente afunilado apenas num dos sentidos e sem sinais de trânsito que o assinalassem. Sua excelência o regente do reino deserto, inquirido sobre o seu estado de espírito à saída da missa de domingo, depois da comunhão e da vacina, proferiu apenas, com ar compungido e penitente, um expressivo e erudito “puta que pariu” e seguiu para um dos restaurantes do Guincho, onde já o esperava um numeroso grupo de deserdados do BES. Por avaria no cabo submarino não é ainda conhecida a reacção de Boliqueime e estão desactualizadas as cotações do bolo-rei na bolsa da Malveira.

 

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