6 de janeiro de 2004

Assim até o Francisco fica a saber!

Dr Prado Coelho e a sociedade civilQuem, no Porto, quiser saber onde mora o Francisco, basta-lhe que comece a subir a Rua de Camões e se detenha em frente à antiga estação da Trindade. Onde actualmente alguns operários, certamente vindos de leste, pregam dísticos na vedação a dizer "frente de obra", "utilize o outro passeio" ou "metro do Porto". Enquanto outros, no interior, prosseguem com escavações arquelógicas, sem método e sem ritmo, ou procuram raposas nas tocas abertas no coração da terra por máquinas malucas.

Ele, o Francisco, mora ali há anos, sob as arcadas do velho edifício onde funcionou a estalagem Corcel, encravado entre uma parede do prédio que ainda não ruiu e uma fila de automóveis que, em espinha, aproveita o passeio para o estacionamento. Tem sempre à volta da enxerga em que se deita uma enormidade de porcarias e inutilidades que são todo o seu património. Por mais que instado a fazê-lo, não se muda. Por vezes, não sei quem, vem com uma carinha e leva-o, carrega-lhe o património para a lixeira e lava o passeio à mangueirada. Dois dias depois o Francisco está de volta. Espoliado do seu património, recomeça vida de novo.

Está habitualmente sóbrio o Francisco, desde que esteja a dormir. As mesmas garantias já não podem dar-se desde que esteja levantado e as garrafas de cerveja, vazias, se acumulem como parte do património. Não é agressivo e chega, muitas vezes, a ser prestável e a oferecer-se para levar a casa as compras dos moradores adjacentes. Raramente implica seja com quem for. Sobe a rua, a passo, falando sozinho, desce-a da mesma maneira, mas calado. Nunca andou a arrumar carros porque essa atitude, segundo afirma, é o seu contributo para o Porto Feliz do Dr Rio. Além disso corria sempre o risco de alguém do Jornal de Notícias, que fica em frente, lhe tirar o retrato e pespegar com ele nas páginas do jornal. Um desprestígio!

O Francisco não tem e não vê televisão, da mesma forma que não tem e não ouve rádio. Mas lê durante grande parte do tempo em que tem que esperar pela próxima cerveja. E escreve muitos algarismos. Em folhas soltas de papel quadriculado que os vizinhos, compadecidos, lhe vão oferecendo. Desenha-os cuidadosamente, com firmeza na mão e sem emendas. Uniformes e regulares, de fazerem inveja a quem frequenta escolas. Do ensino público ou privado, tanto faz.

Cumprimenta quem passa com a educação esmerada de quem nunca fez parte da junta de freguesia. Embora se apresente barbudo e sujo, com aspecto andrajoso, mas não utilizando roupas rotas. Um destes dias perguntou-me o que era isso de sociedade civil e se isso era bom para ele, lhe trazia mais benefícios, significava o aumento da pensão social ou, pelo menos, meia dúzia de cervejas a mais. Por mais que me custe dizê-lo, hão-de V. Exas. desculpar-me a grosseria, fodeu-me! Tirou-me o pio e, sem pedalada, não soube responder-lhe.

Saiu-me a sorte grande hoje, depois de ontem terem arrancado as emissões do canal de televisão Dois. Com os mesmos emissores, as mesmas instalações, as mesmas frequências, as mesmas caras e até o mesmo canal na TV Cabo. O mesmo presidente do conselho de administração e o mesmo impagável ministro da presidência também. O Dr. Eduardo veio hoje, por caprichos do destino, em meu socorro. Ensinando-me que o conceito de sociedade civil traz a sua marca de formulação hegeliana, nos Princípios da Filosofia do Direito, que tem precisamente na segunda secção da terceira parte um desenvolvimento que lhe é consagrado.

Logo à noite já esclareço o Francisco, que anda afligido com o assunto. E entrego-lhe o recorte do jornal para ele ler ao serão, entre o frio de inverno e mais uma Super Bock!

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