20 de junho de 2005

Grande prémio

Não vale a pena continuar a chover no molhado e repetir que esta estranha espécie de país me desencanta. Ainda por cima quando há muito deixei para trás as minhas leituras surrealistas e a minha grande compreensão para com o movimento e a sua permanente rebeldia. Mesmo que continue a achar, por mim, que nunca vi desenhos à pena como os que vão subscritos por Artur do Cruzeiro Seixas.

Mas por mais que pense ou tente fazê-lo, por mais que converse com os conhecidos e os amigos e por mais que leia António Barreto e Vasco Pulido Valente, não consigo descortinar o serviço público que a RTP apregoa. Os subordinados de Almerindo Marques - mais um reformado a exercer um cargo que lhe complemente a pensão e ajude à conveniente educação dos netos - entendem que serviço público, em primeiro lugar, é futebol. Seja qual for a hora, o dia da semana, o escalão ou os intervenientes. Pode ser um sub-20 qualquer, jogado a feijões, na Somália ou no Cambodja. Para a RTP é serviço público, tem direito a enviado especial e a transmissão directa. Mesmo em estúdio o enciclopédico Gabriel Alves há-de pronunciar-se sobre a qualidade do relvado, a habilidade inata do número sete e a falta de músculo dos defesas centrais para o confronto aéreo.

Ainda ontem, no telejornal da noite, a RTP alinhou, em segundo plano, temas nacionais absolutamente irrelevantes que nem sequer importavam ao grupo Espírito Santo e muito menos a este, mesmo sem grupo nenhum. Um incêndio qualquer, com labaredas a atingir a altura de um prédio de cinco andares. Uma inoportuna greve de professores que poderia prejudicar a realização dos exames previstos para a canalha das escolas. Os riscos que decorriam do calor excessivo que se tem feito sentir. A descoberta, algures em Caminha, de uma lancha rápida carregada com mais de meia arroba de uma droga qualquer.

A RTP abriu o jornal com o acontecimento extraordinário do Grande Prémio dos EUA ter um português colocado na terceira posição, entre seis concorrentes. Quando, recorde-se, até hoje apenas o visconde de Nicha Cabral e o comerciante de automóveis Pedro Lami tinham conseguido partir-se todos e deixado as provas autenticamente feitos em bocados. Tal feito justificou uma segunda chamada ao directo com a prova a decorrer, uma chamada à bandeirada de xadrez final, mais uma à cerimónia do pódio onde o coitado do português ficou sozinho a espalhar champanhe e ainda uma outra a uma conferência de imprensa a que os dois pilotos da Ferrari - que ocuparam as duas primeiras posições - não puderam furtar-se por obrigações contratuais. Curiosidade terá sido o facto de nunca ter havido grande prémio em que apenas tivessem largado seis automóveis. O que envergonhou toda a gente, começando pelos que faltaram e que produziram um comunicado conjunto a desculpar-se e acabando pelos que venceram, mesmo sem querer. E que se furtaram às festividades da vitória.

Tal é, afinal, o umbigo português: magnético, irresistível e prenhe. Que dá muito mais importância à construção de estádios do que à edificação de hospitais e à comparticipação nos medicamentos. Mesmo quando as listas de espera para as cirurgias não preocupam o ministro e vão sendo reduzidas pelos que morrem da doença ou da espera pela cura. Ainda mesmo que, por precaução, esperem sentados.

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