Zé Sapalo
Zé, tu foste embora como se mais uma vez tu fugisses, sem avisar nada, sem falar, sem dizer onde eu ia conseguir te encontrar. Por isso, até agora, desconsegui, mas acho que um dia a gente vai estar no mesmo sítio, falando da catuitis, de bagres, de cachipembe, de bicicleta Hopper, do bairro da Bomba. Quando perguntei na senhora e ela me falou, fiquei pior do que tu com piela de cachipembe, parecia aquele catruiti que tu mataste no ar, com a fisga a gente tinha adiantado fazer com pau tirado no mato e borracha de cambradar que não prestava mais. Só que catuiti é passarinho, o bico pequeno, o azul claro nas penas do peito, o cantar de todos juntos como enxame de abelhas. Passarinho não chora e os meus olhos foram ficando tristes, sem riso na boca, olhando a panela ao canto, onde batias o pirão com o luíco comprado no Canhé. A pensar que não precisava mais fuba nem peixe seco para assar em cima das brasas. Ninguém mais era capaz de fazer aquele pirão, assar carapau que parecia mesmo como a corvina.
Ainda ouço o camião Volvo roncando pelo fim da tarde, descendo a picada aguentando tanto saco de milho carregado em cima dele, tu empoleirado, olhando todos os lados, a cabeça virando com depressa, os olhos muito abertos para ver todo esse mundo novo e lhe conhecer. A carapinha suja, os cabelo com falta de lhes lavar, descalço, meio calonjanda das pernas, um calção velho amarrado na cintura, uma camisa de manga curta, meio velha e ainda mais suja, assim, por fora do calção. Vinhas do vicanjo, nunca mesmo que consegui aprender o nome do teu quimbo, o meu coração ficou com o nome de Chamissassa, a mulembeira grande no meio das cubatas, os seculos sentados nas portas, as pernas para fora. Ao lado do camião os miúdos todos correndo, querendo subir, apanhar boleia, gozar com o burro que chegava do vicanjo.
Aí, só de olhar, adiantamos ficar amigos para toda a vida, até que a tua acabou, afogada no vinho e na piela de cachipembe. Desceste do camião, assim com medo de cair, mais ainda de ver tudo novo em todos os lados à tua volta. A senhora adiantou desenrascar umas roupas minhas, te deu um bocado de sabão azul, mandou-te para tomares banho como devia ser. Voltaste como se já fosses um calcinhas da cidade, pronto para ser meu irmão, assustado de te falar contigo, com receio de estar mandando-te fazer nem sei o quê e não perceberes, o medo da porrada. Adiantei contigo o meu pouco umbundo de merda, mais bem eu ia começar de aprender contigo, a senhora olhando de lado sem perceber essa nossa conversa, a gente se rindo. Correndo pelos terrenos arrumados da chitaca, pelo meio do capim grande carregando os bicos de lacre, até mesmo ao rio que o nome dele me esqueceu, os brancos adiantavam de lhe chamar de ribeira não sei de quê.
Agora a senhora me diz que me morreste. E adianta tirar o choro dos olhos com o avental daquele pano pintado que tu sabes qual era. A mim o choro fica dentro da minha cabeça e a tristeza também. E ambos me fazem doer a vida para sempre, como a tua falta. Hoje lembrei-me. Sozinho, o choro chegou-me nos olhos. E penso que isso de seres meu amigo, de comermos o pirão da mesma panela e repartirmos o mesmo carapau seco aquecido nas brasas, não acaba nunca. Nem com a morte que te levou a enterrar num caixote simpes e barato, quando o milho tinha nascido e já estava assim, desse tamanho!
2 Comentários:
Simplesmente ...divino!
mjc
Enquadrado e bem contextualizado, além de história bonita.
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