Na ausência de todas as coisas
Quando
se fez luz e eu não soube o que chamar-lhe, entendi a existência de deus na
forma e dimensão que lhe faltavam. Tanta coisa e nada sem nenhum sentido, à
falta de símbolos para as representar e para poder dar-lhes um nome, um aspeto,
uma cor, um cheiro, um movimento ligeiro. Tantas coisas sem nenhum nome para
lhes chamar, a mesma coisa que ter tantos nomes sem nenhuma coisa para lhes
atribuir, a perfeita ordem natural de tudo sem nenhuma arrumação e sem nenhum
remédio.
Cruzarmo
nos sob um pedaço de céu azul e não sabermos que isso é horizonte, quanto mais
azul, que são olhos aquilo com que nos vemos e carinhos os raios de luz que nos
atravessam. Tu e a tua mão ali, à beira rio, a água corrente com peixes à
deriva, sem descobrirmos como nos tratarmos, desconhecendo que um gesto simples
pode bastar para nos entrelaçar os dedos e as vidas, e para trazer para perto
os barcos distantes e a felicidade que facilmente virá do paraíso seguindo o
voo inquieto das gaivotas e o sonho louco dos poetas.
Tanto
mar para navegar sem sabermos que é água, que é azul e que guarda peixes e
conchas e tesouros de naufrágios que ainda não houve. Tanta harmonia por não
haver ódio que se nomeie nem ambição que se conheça. Tanta gente diferente, para
lá de todo o tempo líquido percorrido, sem sabermos que gente é, e que é
diferente, depois de surgir na praia quando mais uma noite escura se enrola nas
ondas de onde brota a luz tranquila da manhã, a coberto de um sol que enche a
paisagem e nos restitui o olhar macio com que nos ferimos, sem o sabermos. E
amarmo nos por isso!
Só
o silêncio das palavras e o ruído desnecessário da sua ausência, tantos corpos
que se apressam para nos tocar o comprimento dos cabelos, pássaros que voam de
asas fechadas, espalhados pelas areias finas, os peixes sem barbatanas,
encalhando como troncos perdidos que o mar devolve às pedras da praia. E a
felicidade de se não saber cabelos, pássaros, areias, peixes, troncos e mar ou
oceano. A necessidade assim urgente, de inventar um deus na ausência de tudo,
sem nomes e sem distâncias, sem fomes e sem frios. Apenas a água salgada, os
olhares naturais que partilhamos, os dedos que juntamos. A vida que se inventa
sem nome, e que se vive sem limite!
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