O já anunciado novo roubo das pensões de reforma [ou taxa de sustentabilidade das pensões, na obtusa linguagem dos parasitas do governo e da maioria parlamentar]
Por
simples acidente de “zapping” – que até nem sei o que quer dizer! – fui dar a
um canal de televisão onde se desenrolava um debate parlamentar sobre o assunto
em título. Não tendo as linhas que escrevo nenhum merecimento, acho todavia que
o governo e a maioria tão pouco merecem o tempo que possa despender a
escrevê-las. Mas não posso deixar de recordar Eça de Queirós há 142 anos e a
actualidade das linhas que se seguem.
Maio 1871.
A opinião tem pela Câmara dos Deputados um
sentimento unânime, e unanimemente declarado: o tédio.
Diz-se mal da Câmara por toda a parte. Os
jornais mais sérios falam constantemente na sua improdutividade. Aparecem
contra ela panfletos satíricos. Ela é geralmente considerada como um sórdido
covil de intrigas. Se se pergunta:
— Que houve hoje na Câmara?
— Uma farsa - respondem uns.
— Uma feira - respondem outros.
Os jornais políticos vêm cheios destas fórmulas:
«A Câmara ontem deu um espectáculo triste para quem preza os verdadeiros
princípios... «A Câmara está oferecendo a prova da sua falta de
independência...» «A Câmara salta por cima dos princípios mais rudimentares de
administração».
— O parlamento é uma vergonha - diz-se nos
cafés.
— Vamos aos touros! - exclama-se nas galerias
(textual).
— Amanhã há escândalo! - murmura-se na véspera
das sessões.
Fazem-se-lhe epigramas, põem-se-lhe alcunhas. Os
folhetins escarnecem-na; os jornais de notícias contam com uma singeleza
dramática: «Ontem a sessão passou-se em injúrias pessoais». Um grande escritor,
que é também um grande carácter, chamou-lhe:
«Lupanar!» O dito julgado justo, e coberto de
aplausos, é sempre citado.
De que provém este desdém geral? De um surdo
fermento de hostilidade que haja entre nós contra os grandes corpos do Estado?
Da convicção nascida de uma experiência diária?
Tu, leitor de bom senso e de boa-fé, que não és
deputado, e te sentas na galeria, ou lês as sessões no jornal, responde tu,
nosso amigo e confidente!
A opinião é legítima e fundada em experiência. A
Câmara (tomemos a actual, para exemplo) não tem princípios, nem ideias, nem
consciência, nem independência, nem patriotismo, nem ciência, nem eloquência,
nem seriedade. Isto não quer dizer que isoladamente, indivíduo por indivíduo,
se não encontrem estas qualidades com um relevo poderoso; seria ridículo negar
a erudição do Sr. Latino, a honestidade do Sr.
Rodrigues de Freitas, etc., etc. O que se quer
dizer, é que, como corpo constituído, sentada nas suas cadeiras, com o seu
presidente, a sua campainha, o seu copo de água com açúcar, e os seus contínuos
- a Câmara tem a falta absoluta de qualidades que a ilustrariam, e a abundância
de defeitos que a desonram.
A Câmara não tem princípios. É monárquica, e
corta a lista civil, dando toda a latitude ao Rei na política, mas
reduzindo-lha no orçamento. É católica, e mostra-se hostil à defesa do poder
temporal, o que, por uma dedução lógica, é mostrar-se simpática à condenação do
catolicismo. Dá, alternadamente, maioria a todos os partidos.
E só serve as ambições de chefes, que a exploram
e que a desprezam.
A Câmara não tem ideias. Diante de um país
desorganizado de um extremo ao outro, que faz? Discute a questão das ostras.
Não apresenta uma lei, um regulamento, uma reforma, um projecto. Durante um mês
inteiro discute se o Sr. Soares Franco deve ter o comando da Armada, ou se o
não deve ter. O ministro declara que sim - «porque o comando da Armada é de
tradição de três séculos». Este princípio do Governo, logi-camente entendido,
obriga o ministério a levantar a forca, reconstruir os conventos, ressuscitar
Afonso Henriques, ir imediatamente descobrir outra vez o caminho da índia
— e ficar sempre a descobri-lo!
A Câmara não tem justiça. Se alguma coisa
decide, na sua pequenina área de alterações pequeninas, não é no terreno da
justiça pública, é no do interesse político.
Quem ignora os exemplos? A sua enumeração
fatigaria Homero.
A Câmara não tem consciência. O seu critério, a
sua moral, é a intriga. A intriga política, a intriga partidária. A maioria
apoiava o sr. marquês de Ávila; a maioria abandona-o. Porquê? Era ontem apto, é
hoje inepto? É que o sr. marquês de Ávila se nega à discussão do orçamento.
Nesse caso para que lhe dão a lei de meios até Julho? É um imbróglio conduzido
por uma intriga. Acham-no tão impróprio que se afastam dele, mas dão-lhe o
poder por mais dois meses.
A Câmara não tem patriotismo. É necessário
prová-lo? Que lhe importa a ela o
País, a sua organização, o seu progresso? Que
faz por ele? Com que instituições o dota?
Que melhoramentos lhe dá? Que interesse tem pela
instrução, pela indústria, pela agricultura? A Câmara intriga e vocifera! De
resto é um baralho de cartas com que chefes hábeis fazem uma partida de
voltarete. E o País é quem leva os codilhos.
A Câmara não tem independência. Vede as ameaças
de dissolução. Ainda a dissolução não aponta ao longe, já a Câmara está
encolhida debaixo dos bancos!
A Câmara não tem ciência. Nem administração, nem
economia, nem direito público, nem direito constitucional, nem história, nem
gramática: a Câmara nada sabe.
O Sr. Dias Ferreira, um professor consagrado, o
Sr. Sampaio, um jornalista ilustre, e um ou dois magistrados que são deputados,
poderiam, melhor que nós, vir contar nas
Farpas os discursos grotescos proferidos no
parlamento em questões de doutrina.
A Câmara não tem eloquência. Queres ver, leitor
de bom senso, um modelo de discurso? Foi o sr. deputado... Para que dizer o
nome? A nossa questão não é de nomes, é de factos. Vejam o Diário das Câmaras.
O orador começa por um exórdio. Conta como Platão dormia a sesta, e o que
faziam as abelhas do Himeto. Depois diz que desejava ter os dotes de suavidade
e brandura para rastrear Platão. Pausa. Entra em seguida em matéria. Principia
por declarar que já vai longe para ele o período da adolescência, mas que é
natural que por lá lhe ficassem antigas fervenças, restos daqueles fluxos
seivosos (textual). Depois explica como era o acordo que reinava entre os
deuses de Homero: «Aquiles empunhava o gládio, Ájax brandia o ferro!» Passa em
seguida aos trabalhos de Hércules. Narra durante dez minutos a fábula de
Oxilus. Fala na Eólia, na Etólia, e no Peloponeso. Menciona Júpiter, no Olimpo,
sentado no seu trono coruscante (textual). Trata dos sacerdotes egípcios, dos
ídolos, do cão Anúbis, e da esfinge, que segundo ele, era um deus com cabeça de
gato (parece incrível mas é textual!) Logo adiante cita as portas da Aurora. A
propósito da sua alma brada:
«Malheur à qui sonda les abimes de l’âme!»
Depois ocupa-se da maneira de conceber das
aranhas. Aponta por essa ocasião
Saturno, um pouco mais abaixo Isócrates. Alude
às hidras. Desenrola uma história imensa das Confissões de Santo Agostinho.
Discursa ainda sobre Sião e Babilónia, e senta-se! Tudo isto a propósito do sr.
marquês de Ávila e da comissão de fazenda.
A Câmara não tem seriedade. Quem não viu uma
sessão? O sussurro, o barulho, a confusão são perpétuos. Vota-se sem saber o
que se discutiu, e continua-se a conversar.
As questões pessoais estão constantemente na
ordem do dia. Voam os desmentidos.
Fervilham as injúrias. Nos momentos mais serenos
é a graçola e a troça. E das galerias o público assiste, ora indignado ora
divertido, ao espectáculo sem igual.
Achais estas páginas cruéis? Pensais que não nos
dói tanto escrevê-las como vos dói o lê-las? Pensais que é com espírito alegre,
e a pena ao vento, que levantamos um por um, diante do público, os farrapos da
vossa decadência? - Apelamos para vós mesmos. Se algum de vós, na sua
consciência, acha que não dizemos uma verdade perfeita, que nos atire a
primeira pedra como no Evangelho, isto é, que nos lance a primeira contradição.
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