Representantes do povo a banhos
A
democracia representativa é, já e só por si, uma romaria pegada entre
representantes e representados. Solenemente os representantes ignoram e odeiam
os representados e estes desprezam os representantes com a maior carga de bílis
que a vesícula consiga segregar e a mais extensa ladainha de impropérios que o
vocabulário lhes permita. Tirando isso, a confraternização entre ambos é diária
e total: cruzam-se às esquinas, aguardam nas mesmas paragens de autocarro,
descem as mesmas escadas rolantes, tomam a bica ou o cimbalino com o ventre,
dilatado ou contraído, encostado aos mesmos balcões. Ao fim do dia sentam-se
nas mesmas esplanadas, debicando caracóis e emborcando imperiais, enquanto o
sol se esconde e a noite desce suavemente, como os cadáveres descem à cova. Com
a alma encomendada ao diabo, à má sorte e à maioria parlamentar.
Os
representantes nunca fazem nada para si e muito menos em seu proveito,
salvaguardando o legítimo direito a um salário digno que eles próprios definem,
o emprego de familiares e amigos porque é preciso sobreviver em tempos de crise
e a proteção de correlegionários e simpatizantes, alistados na mesma quadrilha
de assaltantes e malfeitores, com direito a sede com porta para a rua e
subvenção estatal que, como representantes, eles têm a pesada responsabilidade
de estabelecer. Trabalham arduamente durante todo o ano, viajam para todos os
cantos do mundo, encontram-se com os representados nos recônditos mais
improváveis, privam as mulheres da assistência necessária – e muitas,
inteligentemente, mandam-nos pastar para outra pradaria – e os filhos da ajuda
necessária nos trabalhos escolares e na aprendizagem das orações do catecismo.
Com
tão atarefada e intensa atividade é natural que se esgotem, problema que a sua
superior sapiência sabe não afetar os representados, que nem sabem o que é o
“stress” e se dizem, quando muito e só por vezes, apenas cansados. E que,
nessas circunstâncias, aproveitem agosto para a ida a banhos e para as
sardinhadas com os representados, a cavaqueira – cuja base etimológica,
refira-se, não vem de cavaco nenhum – e o bailarico com a concertina e o
corridinho à cabeça. É bonita de ver esta osmose simples e profunda entre os
habitantes precários da aldeia da Coelha ou da praia da Manta Rota e os
desempregados da serra do Caldeirão, que não precisam de emprego, de reforma,
de subsídios, que fazem filhos e que são
felizes sem saberem o que têm e, de forma ingrata, a quem tanto o devem.
Ainda
ontem, a noite passada, na Coelha, o senhor Silva, em nome dos portugueses,
teve um contingente policial ao seu serviço que alguns curiosos tiveram
dificuldades em quantificar. Para o proteger? A ele e à Maria? Nada disso, nem
pensar! Apenas para garantir que a rua se mantinha livre e os portões da sua
casota abertos de par em par, para que todos os representados pudessem chegar
até ele, trocar duas palavras de amigo, agarrar no pedaço de broa, por-lhe em
cima a sardinha a pingar gordura e empinar o copo de tinto do vizinho Alentejo.
Quem
foi que disse que nem se podia passar à porta? De certeza alguém que tinha
pedido um Porto Ferreira!...
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