O Natal são momentos, o resto é inverno
O
Natal são momentos, o resto é inverno. Inverno, manhã de mau tempo, chuva,
vento forte, ruas vazias de gente, mar em fúria. Vagas de sete metros,
toneladas de água atiradas contra o cimento armado, colunas brancas de espuma e
ira, a tocarem as nuvens e a assustarem as gaivotas num voo desordenado e
líquido. Solidão e mágoa, o vento vergando os braços longos das palmeiras, a
fragilidade de uma silhueta longe e perto, cabelos em desalinho, a face exposta
aos salpicos de sal que o vento arrasta, um frio por dentro que não tem medida,
a angústia acaba sempre a escorrer-nos dos olhos tristes.
A
cidade cresce pela margem do rio acima, ruas estreitas, todas as portas
fechadas, nem alimento nem abrigo, só a chuva esgotando-se na corrente das
valetas, dia de natal. Há garrafas vazias que a noite solitária deixou
espalhadas pelos portais, os corpos dispersaram-se pela alvorada, encharcados
no conforto do álcool e na miséria dos dias ainda por chegar. Corpos tisnados
nas brasas frias da tragédia, sujos, côncavos, os trapos andrajosos, os olhares
parados contra o vazio móvel dos faróis. Que dia ainda tão mais igual aos
outros, mais espaço nas ruas para as encruzilhadas que a vida tece.
Depois
o silêncio absoluto das horas em redor, as ruínas que os anos foram deixando
pelos degraus, o cinzento da esperança que não houve, do passado que não é. O
futuro é o horizonte metido num buraco que se abre sob os pés, escuro e fundo,
chegando ao centro da terra, só cinzas saindo das crateras, soterrando o verde
das encostas, enchendo o leito vertiginoso dos ribeiros de montanha. Engrossando
rios de águas barrentas soltando-se das margens, alagando terra firme,
arrastando desejos e fortuna para o mar alto. Onde moram todos os naufrágios!
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