Escrevo-te silêncio
Escrevo-te
silêncio. A inquietude de uma folha vazia de ideias estende-se-me pela frente,
só vazio, o céu solto de gaivotas, os ninhos das cegonhas nus no alto de
antigas chaminés e no cimo das torres das igrejas. Nem restolho, nem pássaros,
nem trindades. Nenhum violino que chore, nenhum saxofone que arraste o som pelas pedras da calçada.
Uma
inquietação, compulsiva e viva, um tumulto de saudades, dois rios caudalosos
que nascem no fundo garço dos meus olhos. Um olhar sereno, uma angústia calma,
a lentidão com que percorro cada pequeno detalhe do teu corpo, a esperança a
soltar-se-te dos cabelos desalinhados ao sabor do vento norte, frio e
persistente. A praia vazia de banhistas, a areia fina arrastada pelo mar
alterado, espuma suja, casas inundadas, destroços navegando pelas ruas, tão
longo é o inverno, véspera de primavera.
Dois
dedos leves a afagar-te a fronte, desenhando-te carícias na face macia,
pousando-te suavemente sobre o sorriso cúmplice e a humidade natural dos teus
lábios finos. Os beijos que me encaminhas para a alma, com sabor a chocolate, estrada
aberta, nem curvas nem portagens, o coração apenas apeadeiro. O calor morno do
teu ombro chegando-me às narinas, a volúpia da fragrância fresca que se liberta
do teu corpo que desvendo, viagem completa, caminho das especiarias, dois
braços à volta da tua cintura fina.
A
rota desenhada a traço fino no teu dorso, ponto a ponto, um dedo indicador definindo
o rumo, como bússola apontando ao paraíso, cada beijo suave um passo mais para
o destino, os braços trémulos num abraço forte apertando-te ao meu peito. Trópico
de Câncer, as mãos imóveis sobre o encanto dos teus ombros, geografias,
cruzeiro do sul. rosa dos ventos, astronomia, constelação de uma só estrela, estrela
maior, primeira grandeza, sistema solar, centro do universo.
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