Melancolia
Amanheceu
um domingo triste de primavera, um sol medroso arriscando-se tímido no cinzento
granítico das calçadas. O rosa das magnólias, frágeis e sem aroma, por breves
dias vai projectar-se contra o azul quase limpo do céu, se não houver nenhum
eclipse que o impeça. As pessoas transpiram uma calma aparente e falsa, que não
carregam, e juntam-se às portas dos cafés a dizer mal dos vizinhos e dos amigos.
Vestidas como se fossem para os empregos que ainda sobram, e algumas ainda
assim se dirigem para a missa, a tomar a hóstia, fingir santificação e atentar
contra o celibato hipócrita do padre, escondido sob o ar solene e rico dos
paramentos.
Tudo
parece calmo, e eu aqui sentado à mesa do café, meia de leite e um pão com
queijo que me servirão de alimento durante todo o dia. À tarde vão faltar-me as
forças nas pernas, irei cambalear e encostar-me às paredes ásperas e frias, tal
como me faltam o ânimo e a vontade para escrever poesia num sítio virtual onde
tudo é obra de arte. À minha frente um homem calvo, quase novo, usa brincos nas
orelhas, tem os braços grotescamente pintalgados com tatuagens negras e vai
colorindo apressadamente os quadradinhos de um caderno escolar de fazer contas,
que retirou de uma mochila que depositou sobre a cadeira ao lado. Alinhada
sobre a mesa há uma dúzia de esferográficas de cores diferentes, prontas para a
chamada e aptas para a função. Cada quadradinho pintado é um Picasso que os
museus correrão a licitar nos próximos leilões, um poema que Mário Viegas não
teve tempo de dizer por morrer precocemente, uma prova dos nove que
simplesmente não dá certo.
E
ainda este vendaval de facas que é o teu silêncio, invadindo-me a cabeça como
se fossem espadas desembainhadas prontas para a refrega. E o desprezo explícito
que carregam, a escorrer-me pela face num ininterrupto fio de sangue com que se
me escoa a vida no gume de uma lâmina com que me feri ao fazer a barba, logo
pela manhã. Este sol sem brilho e sem vontade a que não sobra mar que se
enfureça em vagas de sete metros, a desfazerem-se contra a imobilidade
enganadora do molhe, só cimento e aço. E todas as perguntas que deixas sem resposta,
e todos os longos silêncios que deixas vazios de palavras, e o telefone sempre
pousado e quieto, esperando por um sinal teu que nunca chega. Enquanto te
distancias e vais a caminho de um destino um pouco mais a sul!
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