Paisagem de domingo com gralha ao lado
Domingo chuvoso e triste, um
nevoeiro fino e persistente a saber a inverno, que te humedece os cabelos e que
vai parando nos semáforos, à espera do verde do sinal. Trago-te presa ao
telefone, a saber que tempo te faz no quarto, onde te mantens no quente dos
lençóis, esperando pela primavera e pelo verde da folhagem na ponta dos ramos
dos plátanos centenários.
Resta o jornal, só desgraças
e a sabedoria única do Vasco, que não vai além das Portas de Santo Antão, que
não existem na invicta, onde até a humidade cheira a porto vintage e sabe a
aguardente vínica, o rio lá em baixo, a recordação de Torga debruada no
contorno granítico dos penedos.
E fica ainda o café ao lado,
atafulhado de mesas onde não cabe ninguém, o pão nas prateleiras aguardando as
encomendas e o saco de plástico que o governo vende patrioticamente a dez
cêntimos cada um, para bem do povo e prosperidade da Alemanha.
E a gralha na mesa ao lado,
uma idade indefinida de alguns duzentos anos, chegada da missa, com a boca
ainda a saber-lhe a hóstia e o terço vulgar enfiado no pulso. A língua solta e
o conhecimento vasto e variado, que sabe tudo e que se não cala. A miúda
sentada à sua frente, muda e calada como uma parede de granito de quatro
séculos e três metros de espessura. De medicina, lexotans e benurons, tens de
ir ao médico, não podes usar os óculos que a tua mãe deixou quando morreu,
podem ser fortes ou podem ser fracos.
O teu avô pu-lo fora do
quarto, morreu numa pensão de Campanhã que nem sei onde é, mas nunca mais o
deixei voltar para casa. A tua mãe é que foi dizer-lhe que estava grávida de
ti, a puta, e diz a palavra solenemente, enquanto se benze. Conheceu três
homens, teve um filho de cada um. Eu que vinha tão bem da igreja, devias de ir
à missa também, devias ficar melhor de aturar, chego ao pé de ti e não posso
aturar-te, vou dizer ao médico, não há lexotans que me cheguem, as dores de
cabeça que já me fizeste. Mas vou para casa, apetece-me comer melão e tenho um
em casa, casca de carvalho que comprei ontem, está no frigorífico, mesmo que eu
não tenha luz. Estúpida, anda embora mulher, vai vestir um casaco, ainda lá
tenho muita roupa tua para lavar, a dona do quarto não quer lá sacos, não volto
para lá, ela quer é os duzentos euros.
E a rapariga de pé, sozinha,
virada para a parede. Impávida, estúpida e serena. A gralha já na rua, de guarda-chuva
aberto, à espera que abra o verde do semáforo, no meio do nevoeiro ligeiro e
persistente.
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