Quando choveu sobre o domingo
Quando choveu sobre o
domingo ficaram desertos todos os adros das igrejas e soube-se que a primavera
não ficaria tempo suficiente para abraçar os dias luminosos de setembro,
olhando o rio do alto do promontório granítico onde a urze se fez nome de homem
e escreveu silêncio com todas as letras que tem o abecedário, com os olhos
serenos navegando até à dignidade final do estuário da foz.
A meio da eucaristia o
sacerdote celebrante pensou tratar-se de uma invasão prematura de peregrinos,
chegados de repente, de todos os lados e por todos os meios e, discretamente,
do fundo dos óculos grossos de uma forte miopia, piscou um olho cúmplice ao
santo pousado ao lado do altar-mor, carregando o menino ao colo, como se fosse
Santo António em noite de vinho e sardinha assada, que não teve mais do que um
olhar vago e modesto, sem interpretação e sem entusiasmo.
Para lá da chuva e da
distância que nos separa de setembro, peregrinos de verdade, arrastando-se de
joelhos sobre a pedra lisa, escorrendo sangue, suor e lágrimas e expiando
pecados que se acolhem à sombra das azinheiras, seguram entre os dedos terços
de madrepérola e imaginam caminhos seculares que levam a Santiago e que
confluem na praça única de obradoiro, a quieta imponência da velha catedral debruçada
sobre o lajedo gasto de tantos passos em volta, à procura do segredo.
E tu ali no centro,
indiferente à chuva, ao frio e ao silêncio, um vestido de tule que te deixa ver
o corpo todo e a alma inteira, estendendo-me o olhar macio, cansado de muitos
percursos, todos os desejos para além das pupilas de outras latitudes e a
certeza de que o amor nasce em todas as épocas e em todas as praças. E fico-te
com o olhar assim, ao colo, peregrina de todos os caminhos, mulher de todos os
destinos, fé e esperança de todos os domingos, como se não houvesse chuva e tu
toda fosses aquela luz mágica de todos os dias de todos os setembros.
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