3 de abril de 2015

Sobretudo de girassonde

Lá está ele, o morto, espartilhado dentro de um sobretudo de pinho tratado, cheirando a verniz e brilhando de castanho escuro, como se fosse de pura caxemira inglesa produzida nas fábricas dos arredores de Manchester. Aperaltaram-no para a função e para a viagem, última e demorada, de alguns quinhentos metros, com uma missa pelo meio e as lágrimas fartas das carpideiras importadas das terras de África. Onde, apesar do calor tropical, os sobretudos têm a nobreza exótica do girassonde e incorporada a resistência perpétua ao caruncho e a quaisquer outras bichezas da madeira e de outros materiais.

Calça sapatos novos de verniz, com a sola virgem e as biqueiras a apertarem-lhe os dedos e os joanetes, que já não sente, como não sente mais nada. Gente previdente teria tido o cuidado básico de lhe aparar as unhas e de evitar que as mesmas pudessem romper o algodão preto das meias novas que lhe calçaram para o repouso eterno, esticado e hirto. Vestiram-lhe o melhor fato, dos dois que tinha para as cerimónias de despedida a que, de quando em vez, era chamado e para os baptizados raros, das poucas criancinhas de quem já não conhecia os pais, separados pelo rio de águas turvas e revoltas que persiste em correr para a nascente, Mondego e Serra da Estrela. A Figueira da Foz reservada para os espectáculos e para os jogos de casino, a praia para o sol fugidio e ventoso de verão, sem acasalamentos.

O pescoço pendurado no nó torto da única gravata preta que se escondia nos recantos sempre desconhecidos do roupeiro, de cuja desarrumação resultou, roída pela traça e amarrotada pelo tempo, como se fosse vida que ainda sobrasse e que já não sobra. Uma camisa branca que lhe deve ter servido para a comunhão e para o casamento, duas fatalidades e um só destino, de colarinho apertado e com falta de botões nos punhos gastos, uma camisola interior de meia manga, cardada por dentro, por causa dos rigores da invernia e do excesso de humidade que sempre resulta das noites longas de janeiro que se entranham terra dentro.


Por baixo a roupa tradicional e necessária para quem viaja para Neptuno, agora que Plutão foi saneado da colecção oficial de planetas, onde se imagina um frio de rachar, mesmo que seja agosto nas planícies da Andaluzia. Umas cuecas com carcela, um botão a meio, cuidadosamente deixado aberto não vá haver qualquer aperto a meio do caminho e seja preciso abrigar-se atrás de qualquer moita, à conta de qualquer imprevista e ainda humana necessidade. E as ceroulas, de um branco imaculado, depois da cora de três dias ao sol, cardadas por dentro e com atilhos de apertar nos tornozelos. Pronto para a partida, sem bilhete de regresso e sem greve dos comboios.

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