A noite passada num desassossego
A noite passada num
desassossego inquieto, como se fosse um livro, a tua respiração serena
repousando no meu ombro, duas verdes colinas de áfrica adormecidas no teu
peito, um oceano inteiro nascendo-te nos pés, uma margarida singela a
adornar-te a certeza dos passos. Depois, o sobressalto da madrugada, quando a
chuva intensa se precipita sob a luz dos candeeiros e a explosão fulminante dos
trovões e o ar assustado dos teus olhos se aconchega à protecção morna do meu
corpo. E aí fica, sentindo a segurança que não deixa os presos evadirem-se das cadeias
nem os barcos soltarem-se das amarras. Lentamente, o dia amanhece nos teus
dedos e a alvorada chega sob o som magoado de um trompete, como se Louis
Armstrong tivesse voltado só para nós.
Depois é a luz tímida de um
sol de inverno, frio e dócil, que me traz a voz com que me despertas, macia
como veludo, chegando-me num sussurro como se tivesse já percorrido a longa
distância a que ficam as galáxias. Acompanha-te um riso matinal fresco e solto,
igual ao chilreio dos pássaros que esvoaçam irrequietos na manhã, ao sabor da
brisa que agita os canaviais à beira dos ribeiros e os dias de março que já
sabem ao vermelho das papoilas. Ao mesmo tempo que os caracóis desfeitos dos
teus cabelos soltos me caiem sobre o rosto e a tua boca túmida me deposita a
ternura espontânea de um beijo sobre os lábios ansiosos.
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