É preciso avisar toda a gente
É preciso avisar toda a
gente, sair à rua, distribuir panfletos, escrever nas paredes, fazer sessões de
esclarecimento, recolher assinaturas, apresentar uma petição ao parlamento,
garantir que este aprova legislação adequada que nos proteja de todos os
malefícios que nos trazem os velhos. É preciso chamar os bois pelo nome, sem
equívocos nem eufemismos nenhuns, porque velho é velho, pronto, não é idoso,
nem sénior, nem peste grisalha, nem merda nenhuma. É só velho mesmo. É apenas
uma coisa fora de prazo, a que se deve dar o destino que se dá aos iogurtes que
passaram da validade, evitando a infecção intestinal e a disenteria, a bem da
saúde pública e da qualidade de vida a que temos direito, consagrado na
constituição e nos tratados internacionais que já chegaram a Xangai.
É preciso rever o
calendário, alterar as estações do ano, mudar o sentido dos pontos cardeais,
proibir-lhes o verão, antes que nos chegue o dilúvio. Os velhos arrastam os
pés, apoiados em bengalas de madeira que nos devastam recursos florestais e
prejudicam o ambiente, ocupam as sombras das praças, sem licença das câmaras e
sem notícias do bloqueio. Sentam-se nos bancos dos jardins públicos, com a
cabeça entre as mãos magras, a olhar para o vazio, procurando o passado. Dão
milho aos pombos que nos transmitem as epidemias e o desemprego, jogam à sueca
como se praticassem uma ciência, rabujam entre si, desentendem-se e acabam
dormitando ao sol, com a tristeza a adivinhar-se-lhes para lá das pálpebras
cerradas pela sesta.
Os velhos atafulham a beira-mar,
plantam guarda-sóis na areia das praias de bandeira azul, chapinham na água que
lhes sobra das ondas, besuntam-se de cremes dos pés à cabeça, deixam pegadas
marcadas na borda de água, prejudicam o justo descanso de quem pensa e governa
o país, enxameiam as bichas para os restaurantes, onde se sentam tempos
infinitos como se não houvesse relógios, a comer sardinhas assadas e salada de
pimentos, sempre a queixar-se das artroses e do tamanho insuficiente das
pensões de reforma. Os velhos são assim mesmo, uma palavra fugida do título de
um livro de Miguel Esteves Cardoso. Como o amor!
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