No dia dos avós, com algum atraso
A meio da manhã de 3 de
Janeiro de 1958, inesperada e estranhamente, o meu saudoso tio Quim chegou a
nossa casa, parco de palavras, envolveu minha mãe num abraço prolongado e
sussurrou-lhe ao ouvido, com uma tristeza tranquila caindo-lhe dos olhos: a nossa
mãe morreu. A minha mãe, com a dignidade de sempre, simples e humilde, rompeu
num choro profundo e silencioso que, mesmo contido, a iria acompanhar o resto
da vida, até quase há nove anos. Por mim, na altura, pouco me disse a morte da
minha avó Ana, entregue ao espaço imenso que em África basta para fazer as
pessoas felizes, de fisga ao pescoço, tirando visgo das mulembas, montando
armadilhas para caçar bicos de lacre, perseguindo catuitis de peito celeste
pelo meio alto dos capinzais. De facto, ela pouco mais era do que a figura
frágil, franzina e magra, austera e doce, de uma fotografia a preto e branco,
presa numa moldura pequena, exposta no tampo de uma mesinha a um canto da sala,
coberta por uma toalha de renda que chegava ao solo, revestido por um fresco e
afagado cimento vermelho.
Os anos seguintes e a
veneração com que minha mãe a idolatrou sempre, até se lhe ir juntar, vieram a
ensinar-me um pouco da dimensão desta Ana Serradora – sem nunca ter descoberto
de onde teria herdado o sobrenome – habitando um lugar periférico da freguesia,
numa casa modesta, virada para a chada e para a estrada de terra, por onde
desciam pessoas e carros de bois a caminho do centro da aldeia e da missa que
se dizia diariamente, ainda quase de madrugada. Viúva muito cedo na vida, com
cinco filhos espalhados na enxerga e um ainda crescendo-lhe no ventre, povoou
de coragem e silêncio todos os seus dias e, não sei como, fez de todos eles
pessoas adultas, acrescentando ainda ao seu curto património, alguns talhos em
volta, mais algum vinho para venda, algum azeite para o ano, a engorda do porco
para a matança, a salgadeira cheia para os desabridos ventos de Janeiro e para
a duração interminável do rigor gelado dos dias de inverno.
Hoje, quando já mais ninguém
resta do seu tempo, ainda a sua memória desce dos montes em volta, povoados de
pinheiros, até ao centro decrépito da freguesia, onde a população envelhece,
alinhada à porta do centro de saúde e os campos estiolam, entregues ao pousio.
E, à sua figura frágil e franzina, se associa a dignidade com que sempre adorou
o Deus em que acreditava, se entregou ao trabalho, protegeu os filhos e ganhou
o respeito de todos e para sempre. Enquanto eu, que mal a conheci, dou por mim
a escrever estas linhas, sem a intenção de nenhuma homenagem, com os olhos rasos
de lágrimas e a alma completamente desfeita, porque sei que o pobre não tem
direito a nada, nem sequer ao respeito de ninguém. Como também sei que ela era
pobre e que o seu nome continua, apesar disso, a ser respeitado, numa freguesia
que se vai extinguindo devagarinho.
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