Digo manhã e abre-se-me a janela de par em par
Digo manhã e abre-se-me a
janela de par em par. Há um nevoeiro denso que inunda todo o quarto, caindo do
voo baço das gaivotas, à mesma hora a que se apaga a luz dos candeeiros
públicos. É o sábado que chega. Com o outono tombando com as folhas mortas que
vão enchendo o silêncio fresco dos jardins. Vão escasseando os velhos sentados
nos bancos, com as pernas estendidas ao sol do estio e o olhar curto, preso às
biqueiras dos sapatos. E vai sendo menor a assistência que segue atentamente os
jogos de cartas, sabendo sempre qual é a melhor jogada e quem tem o ás de
trunfo, sem prestar atenção à eminência do dilúvio.
Digo palavras e é noite
escura. Há palavras que se soltam e que voam perdidas, sem destino, a que falta
a ordem arrumada que lhes dão os dicionários. E o sentimento doce e amargo que
lhes emprestam os poetas líricos. Depois, nada. Apenas a insónia breve, o olhar
perdido no tecto branco do quarto. Nem uma ideia, um verso, uma rima, alguma
substância para o jantar, um doce servido num prato de porcelana fina. Mas vai
ficar um candeeiro aceso e um livro de poemas que mora sempre à cabeceira,
disponível e solícito. Que se abre ao acaso, onde acontece, e se saboreia
lentamente o poema, que não é só para comer.
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