Nove anos sem ti
Era domingo de manhã e eu
descera os primeiros degraus, quando o telefone me tocou no bolso das calças de
ganga. E, de repente, faltou-me a escada e ruiu-me a vida. Silencioso, reentrei
em casa e sentei-me à mesa. Os cotovelos apoiados sobre o tampo, a cabeça entre
as mãos, os olhos enxutos, o sangue escorrendo-me por dentro, uma dor sem
medida paralisando-me por inteiro. No dia seguinte fui a enterrar-te, pousei
levemente a mão sobre a tua testa fria e chorei. Até hoje não parei mais e sei
que não vou parar. De tempos a tempos volto à tua presença, mas és apenas uma
pedra de granito polido, de um cinzento triste, com um sorriso adolescente, de
noventa anos, soltando-se de uma fotografia que eu tive a felicidade de
registar. Em volta, tudo mudou.
Ficou mais velha a freguesia
e todos os lugares que a completam. Os correios fecharam, o padre morreu, a
casa onde morava está ao abandono e ameaça ruína. Deixou de haver pároco
residente e é o padre da freguesia vizinha que vem para a missa de domingo e,
raramente, para os funerais de quem morre, porque já há pouca gente para
morrer. A Festa Grande mantém os enfeites em papel de seda, a quermesse a
sortear bugigangas sem préstimo e vive de meia dúzia de velhos teimosos,
arrastando os pés e segurando o pálio, arremedando a procissão, e de outra meia
dúzia de velhas, vestidas de branco, carregando à cabeça o peso das fogaças e a
inclemência do sol.
Os bolinhos, com o
inconfundível sabor a limão e a canela, continua a Gata a cozê-los no forno que
tem na cozinha, onde tem pousada num parapeito uma fotografia contigo, que eu
lhe ofereci numa moldura pequena. Fá-lo, mantendo aquele deslumbrante azul nos
olhos, cansados por tantos anos de trabalho, e o discurso desbragado, em bom
português, que faria Bocage corar de vergonha. De resto, fica o futuro dos
velhos pendurados às soleiras das portas, as vinhas por podar, os campos onde
cresce e seca toda a espécie de ervas e a azeitona que ninguém apanha. Gratificante,
é a memória viva da Celeste – com os filhos já crescidos! – e daquela tarde, no
dia de um teu aniversário, em que te foram levar o carinho de uma rosa apanhada
à porta de casa!
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial