O poema não desce pelas encostas das nuvens
O poema não desce pelas
encostas das nuvens, escorregando pelas cores do arco-íris, não é cristal fino
de granizo em noite enluarada de agosto, não é visão de sereia em dia de mar
sereno sem ventos de levante. Não é rima certa e musical, métrica exacta,
quadratura do círculo, verso sobre verso, como tijolos de que se ergue uma
parede, catorze versos contados pelos dedos, uma régua de cálculo que se mete
de novo no bolso da camisa, “erros meus, má fortuna, amor ardente”(*), glória
ou sofrimento, a vila de Constância e o abraço definitivo de dois rios a
caminho do oceano. O poema, mais do que forma, calcário ou granito, pedra sobre
pedra, é conteúdo, é substância, são todos os sentidos à flor da pele, todas as
palavras de corpo inteiro e completo.
O poema é uma ideia breve,
uma frase curta anotada à pressa numa folha de jornal, uma junção laboriosa de vocábulos,
dois cadeados presos a uma das pontes sobre o Sena, testemunho do amor eterno
das águas que, de mão dada, correm para o mar. O poema é o grito, a voz solta
da garganta, a boca de coração aberto, a pele arrepiada, um calafrio polar
descendo pela espinha, a engelhar um papel de circunstância que serve de
memória. É sonho, é vida, flor abrindo como papoila na primavera, fruto
amadurecido apanhado na época das colheitas, o pão quente para as noites longas
do inverno, o calor da lareira atravessando-nos a alma até à chegada das manhãs
frias, o movimento perpétuo, o “vai pelo cais fora um bulício de chegada
próxima”(**).
(*) – Luiz Vaz de Camões,
Sonetos.
(**) – Fernando Pessoa,
heterónimo Álvaro de Campos.
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