3 de agosto de 2016

Manhã de agosto

Manhã de agosto, o sol correndo pelas ruas desertas, um breve lençol de alto-cúmulos a alguns seis ou sete mil pés, as escolas encerradas, o país na praia, molhando os pés, esturricando sobre a areia fina, sem nenhum sinal de brisa ou de vento que nos chegue de Espanha. No porto, o cais também deserto, nenhum bulício de chegada próxima, nem passageiros nem bagagens, poucos barcos silenciosos atracados sem sinais vitais, os motores calados, os pavilhões caídos à míngua de vento, uma paisagem sem nenhuma necessidade que se escreva a Ode Marítima. Álvaro de Campos, sem identificação e sem reconhecimento públicos, exposto para as filas de turistas apinhados no passeio fronteiro aos Jerónimos, sob o pseudónimo vulgar de Fernando Pessoa, sem que lhes interesse saber se falava inglês, quem terá sido o arquitecto do mosteiro ou tão pouco quem tenha sido o abastado dono da obra.


E o venturoso senhor D. Manuel ausente deste lado do rio, desinteressado do ponto mais alto da Torre de Belém, de onde, ainda longe, se divisam as caravelas carregadas de cravinho da Índia e de escravos do Senegal, as velas enfunadas, o vento de feição, a linha de chegada para lá da bruma onde a burocracia da alfândega espera pelo imposto. El rei erecto, postado no centro da vila de Alcochete, onde foi parido, transformado em bronze, virado para o rio, com Lisboa ao fundo, como que adivinhando o terramoto e o regicídio, com o Marquês e a ordem ainda por nascerem. Mesmo na vila ninguém sabe dele, ninguém o viu passar, não esteve no quartel dos bombeiros voluntários, de que certamente é sócio honorário, e não há nenhum palanque montado onde se possa ter recolhido, à espera das largadas de toiros que às vezes correm disparados pelas ruas do povoado.

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