Manhã de agosto
Manhã de agosto, o sol
correndo pelas ruas desertas, um breve lençol de alto-cúmulos a alguns seis ou
sete mil pés, as escolas encerradas, o país na praia, molhando os pés,
esturricando sobre a areia fina, sem nenhum sinal de brisa ou de vento que nos
chegue de Espanha. No porto, o cais também deserto, nenhum bulício de chegada
próxima, nem passageiros nem bagagens, poucos barcos silenciosos atracados sem
sinais vitais, os motores calados, os pavilhões caídos à míngua de vento, uma
paisagem sem nenhuma necessidade que se escreva a Ode Marítima. Álvaro de
Campos, sem identificação e sem reconhecimento públicos, exposto para as filas
de turistas apinhados no passeio fronteiro aos Jerónimos, sob o pseudónimo
vulgar de Fernando Pessoa, sem que lhes interesse saber se falava inglês, quem
terá sido o arquitecto do mosteiro ou tão pouco quem tenha sido o abastado dono
da obra.
E o venturoso senhor D.
Manuel ausente deste lado do rio, desinteressado do ponto mais alto da Torre de
Belém, de onde, ainda longe, se divisam as caravelas carregadas de cravinho da
Índia e de escravos do Senegal, as velas enfunadas, o vento de feição, a linha
de chegada para lá da bruma onde a burocracia da alfândega espera pelo imposto.
El rei erecto, postado no centro da vila de Alcochete, onde foi parido,
transformado em bronze, virado para o rio, com Lisboa ao fundo, como que
adivinhando o terramoto e o regicídio, com o Marquês e a ordem ainda por
nascerem. Mesmo na vila ninguém sabe dele, ninguém o viu passar, não esteve no
quartel dos bombeiros voluntários, de que certamente é sócio honorário, e não
há nenhum palanque montado onde se possa ter recolhido, à espera das largadas
de toiros que às vezes correm disparados pelas ruas do povoado.
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