O senhor Serrano
Desde sempre, em minha casa,
ouvi falar do compadre Serrano. Acabei a conhecê-lo num domingo de verão, quase
ao fim do almoço e também quase no termo da vida, quando nos entrou pela
cozinha, recusou o convite para se sentar à mesa e ocupou uma cadeira de onde,
estrategicamente, dominava por inteiro toda a sala e os pontos que lhe davam
acesso. Era um homem pequeno e franzino, de aspecto frágil, com uns olhos vivos
e inquietos, o olhar saltando como os pardais na eira, à procura dos grãos
perdidos, o palavrão solto a cada palavra dita. Uma argúcia e uma inteligência invulgares,
ocultas atrás da cortina de um tempo que o não deixara ir à escola e o
mantivera analfabeto por toda a vida. Sempre agarrado a um varapau, que lhe
garantia a protecção que a estatura meã lhe recusava, tinha a fama que
ultrapassava os limites da freguesia, de homem valente e temível.
Fascinado pela variedade das
situações e pela fluência empolgante do discurso, deixei cair o convite: da
próxima vez que aqui vier, quero este homem sentado à mesa comigo. Rápido de
raciocínio, não demorou na resposta, instantânea: e sou eu que pago o almoço.
De lado, entendendo-me as intenções, minha mãe acrescentou: tens de trazer um
gravador. Infelizmente a morte foi mais rápida do que eu e levou-o, antes do
meu regresso e do almoço que, algures, ficou por fazer e a mesa por pôr. Mas
ficou-me uma das suas histórias, transbordando do sentido terno de uma justiça
natural e espontânea, que não passa nem pelas togas dos juízes, nem pelos
bancos das faculdades de direito. E que vinha do tempo antigo dos seus vinte
anos quando, acompanhado do irmão, se fizera ao caminho e viajara até França, à
procura de melhor sol e de algum futuro.
Quase pelo fim do verão,
quando o milho colhido ia acabando de secar na eira, à espera do malho, os seus
pais embrulhavam-se nas tradicionais mantas de retalhos e pernoitavam junto às
espigas, velando pela segurança do que lhes custara um ano de trabalho. Pela
frescura de uma das madrugadas, terão sido tomados pelos irmãos ausentes e
agredidos a frio, sem apelo nem agravo. Anos passados, numa chuvosa manhã de
inverno, quando o Serrano se acolhia ao balcão de uma taberna da estrada que
acompanhava a ribeira, alguém lhe chamou a atenção para um vulto que se
aproximava, ainda distante. E lhe disse: vês, aquele que lá vem ao longe? Foi
um dos que agrediu os teus pais, enquanto dormiam na eira, guardando o milho da
colheita. O Serrano saltou para a rua, fez-se à chuva, apressou-se ao encontro
do vulto que se aproximava. Já frente a frente, apenas lhe perguntou: que leis,
que direito, que justiça te permitiram que espancasses dois velhos que dormiam,
guardando o que era deles? Sem esperar pela resposta, um certeiro e único golpe
do varapau deitara o agressor por terra e era ele próprio que, depois,
acrescentava: para mim, complicado, podia ser derrubá-los, mas homem que eu
apanhasse no chão, não se voltava a levantar. Não se enaltece a violência ou,
sequer, a justiça pelas próprias mãos, apesar de outros tempos e de outras
razões para todas as coisas. Mas é admirável o sentido de justiça que, muitas
vezes, mora no espírito da gente mais simples. Como era o Serrano!
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