13 de setembro de 2016

Discurso de uma amanuense dos registos

Eu, querida, quando chega quinta-feira, já acordo com o fim-de-semana a tirar-me a ramela dos olhos, uma fragrância de Givenchy a encher-me as narinas e o sol manso de Setembro a trazer-me a recordação das vindimas na aldeia. Quando o vinho se fazia com os pés, - que hoje só servem para o chefe e o público pensarem! – de calções, no meio do lagar, a olhar os rapazes de soslaio, os cabelos a caírem-lhes para a testa, a cheirarem a mosto e a apetecerem como vinho doce. E os pés persistindo a pisar as uvas, sem sair do mesmo lugar, uma concertina e uns ferrinhos dando música e ritmo à tarefa, um sorriso matreiro, uma gargalhada atrevida, uma grainha que se prende entre os dedos, um frémito a percorrer-me o corpo todinho.

Mas é quinta-feira, mesmo que cheire a domingo. O relógio de ponto implacável, a registar as entradas antes das nove, contando os minutos de atraso, um a um, obrigando a retardar a saída depois de um desgastante dia de trabalho. Estou aqui que já nem posso, mal me aguento em cima destes saltos de oito centímetros, os sapatos a apertarem-me os joanetes, as alças do soutien a marcarem-me os ombros que, sem vaidade, ainda são coisa de que não me envergonho e que se podem mostrar a quem chega com o apetite nos dentes. E tudo isto, a troco de um ordenado de merda, congelado há quase uma dúzia de anos, umas curtas centenas de euros que não dão para comprar roupas de marca ou uma sombra decente para o azul dos olhos, herdado do meu avô de Viana, que sabia de genealogia - ou lá o que é isso! - e dizia que tinha ascendência celta.

Olha, esta tarde apareceu-me pela frente um velho que, de jeito, só trazia um polo Lacoste vestido e um verde baço no fundo dos olhos cansados. Até acho que devia ser proibido atender esta gente, fora do prazo de validade. Deveriam mandar-nos uns trintões, que frequentassem o ginásio e a que pudesse adivinhar-se os músculos do peito e ver os bíceps rebentando as costuras da manga curta da camisa. Que não perguntassem nada, não tivessem dúvidas, não precisassem de nenhuma explicação e que nos enchessem o olho, cansado do bafio da repartição. E que me ajudassem a aguentar os sapatos nos pés e a não me preocupar com as marcas nos ombros, a espreitar por entre o descuido de um botão aberto no decote da blusa. Como se já fosse fim-de-semana!


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