No escuro da noite escrevo vida
No escuro da noite escrevo
vida. E escrevo morte. E nenhuma se vê. É como se te desse a mão numa sala de
cinema, enquanto passa o filme. E a rapariga da fita, que não tira os olhos de
nós, não consegue ver-nos. O escuro abre-nos a noite, traz-nos a ternura de
mansinho, sem que ninguém veja. Não há sol nem pássaros nos meandros da noite.
Fica todo o tempo para o amor e para a alvorada. E para a chuva que cai dos
beirais. E para a neve que se acumula no alto das serras. Somos mais cúmplices
no calor do abraço nocturno, é mais intenso o aroma que os nossos corpos
libertam sob o aconchego dos lençóis que vêm da noite. Nunca os teus seios me
parecem uma sedução ou um convite. São apenas uma parte de nós e nós somos
apenas um. Sem bocados e sem múltiplos. Não precisamos dizer-nos nada, o
silêncio do escuro é todas as vozes e todas as árvores perdendo as folhas e os
frutos. As mãos cheias de tudo. Com poemas desprendendo-se-nos dos dedos. E as
palavras caindo a um canto do nosso escuro absoluto. Irreversível e inteiro,
sem necessidade nenhuma. Partilhando certezas pelo infinito. Despovoado de
estrelas e de luzes, sem mares nem oceanos. Todos os peixes pintados de
silêncio e de segredos íntimos.
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