18 de novembro de 2016

Primeiro Angola foi-me terra

Primeiro Angola foi-me terra, foi-me chão, foi-me escola. Depois foi-me capinzal, sombra de mulemba, voo de pássaro, água de rio. Foi-me ideia de pensar, sonho, esperança, picada de marimbondo, casuarina na fímbria do mar. Praia Morena, Tundavala! Foi-me caminho, livro estudado, poema escrito na água da chuva correndo na valeta, muito sangue fervendo nas veias. Até ser fogo devorando as anharas, guerra nos carreiros da savana, revolta e fé. Sim, Angola foi-me fé, muita fé. Depois foi-me desencanto, desgosto, descrença, lágrimas de revolta caindo-me pela face. Foi-me sal ardendo nos olhos, queimando na boca, cristalizando na areia da praia. Foi-me país, de Cabinda ao Cunene, floresta do Maiombe, com bandeira, hino, armas ligeiras, órgãos de Estaline, terras de Icolo e Bengo, lagoas do Panguila, cacussos grelhados para o almoço. Até deixar de ser!



Agora Angola não me é mais. Nem terra, nem chão, nem escola. Nem me é revolta nem lágrima. É-me apenas grito, é-me apenas dor. Uma dor grande como imbondeiro dominando a planície das terras do fim do mundo. Uma dor permanente, sempre a crescer, que me sufoca, que me mata. Que me afoga, em miséria, em fome, em morte de crianças e de gente que não tem culpa. Angola é-me vergonha, uma vergonha maior do que eu, uma vergonha maior do que ela. Uma vergonha malcriada, obscena, “sundiameno”. Com sabor mórbido a petróleo e a champanhe francês. Angola é-me escuridão. Ainda bem que te foste antes de tudo isso, Alda. Ainda bem que partiste a tempo, meu amigo Ernesto. Ainda bem que te morreste primeiro, sem a fome te sobrar, meu irmão Zé Sapalo!


[Depois de uma reportagem televisiva transmitida pela SIC, enquadrada no Jornal da noite de 17.11.2016].

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