Primeiro Angola foi-me terra
Primeiro Angola foi-me terra,
foi-me chão, foi-me escola. Depois foi-me capinzal, sombra de mulemba, voo de
pássaro, água de rio. Foi-me ideia de pensar, sonho, esperança, picada de
marimbondo, casuarina na fímbria do mar. Praia Morena, Tundavala! Foi-me caminho,
livro estudado, poema escrito na água da chuva correndo na valeta, muito sangue
fervendo nas veias. Até ser fogo devorando as anharas, guerra nos carreiros da
savana, revolta e fé. Sim, Angola foi-me fé, muita fé. Depois foi-me
desencanto, desgosto, descrença, lágrimas de revolta caindo-me pela face.
Foi-me sal ardendo nos olhos, queimando na boca, cristalizando na areia da
praia. Foi-me país, de Cabinda ao Cunene, floresta do Maiombe, com bandeira,
hino, armas ligeiras, órgãos de Estaline, terras de Icolo e Bengo, lagoas do
Panguila, cacussos grelhados para o almoço. Até deixar de ser!
Agora Angola não me é mais. Nem
terra, nem chão, nem escola. Nem me é revolta nem lágrima. É-me apenas grito,
é-me apenas dor. Uma dor grande como imbondeiro dominando a planície das terras
do fim do mundo. Uma dor permanente, sempre a crescer, que me sufoca, que me
mata. Que me afoga, em miséria, em fome, em morte de crianças e de gente que
não tem culpa. Angola é-me vergonha, uma vergonha maior do que eu, uma vergonha
maior do que ela. Uma vergonha malcriada, obscena, “sundiameno”. Com sabor
mórbido a petróleo e a champanhe francês. Angola é-me escuridão. Ainda bem que
te foste antes de tudo isso, Alda. Ainda bem que partiste a tempo, meu amigo
Ernesto. Ainda bem que te morreste primeiro, sem a fome te sobrar, meu irmão Zé
Sapalo!
[Depois de uma reportagem
televisiva transmitida pela SIC, enquadrada no Jornal da noite de 17.11.2016].
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