19 de julho de 2017

A manhã ia a meio

A manhã ia a meio quando o camarada, branco,  Josua Kapango, empurrou a porta do gabinete e entrou. O sol alto inundava o espaço, vindo da janela em frente, que dava directamente para a rotunda, de onde subia a rua que levava ao velho largo da Maianga, talvez cerca de um quilómetro acima. Contornou a secretária e sentou-se. Ajeitou-se na cadeira, à procura da posição mais confortável. Como fazia sempre, pegou numa esferográfica que repousava sobre o tampo. Depois na carta dactilografada em papel timbrado, com o logotipo do grupo multinacional, impresso a vermelho no canto superior esquerdo da folha. Leu a carta. Voltou a pousá-la sobre o tampo da secretária e assinou-a, com mão firme. Uma assinatura ilegível, com traço seguro e aspecto elegante, terminando num arabesco que subia no papel e que atravessava as últimas linhas de texto. Pegou na carta já assinada e leu-a de novo em silêncio. Depois abriu um sorriso largo mas prudente.

Sua Excelência o Camarada Ministro da Defesa
Luanda
República Popular de Angola

Camarada Ministro,

Apresento as minhas saudações revolucionárias e agradeço o espírito socialista com que o camarada Chefe de Gabinete me atendeu, ontem à tarde, nos jardins do ministério, sob a atenta vigilância dos camaradas de guarda.

No seguimento da conversa que tivemos, facilmente compreendi a natureza revolucionária do acto com que duas viaturas de propriedade da empresa que represento, e que nunca fechou os seus escritórios, nem no período de transição antes da independência do país, foram retiradas da garagem onde estavam recolhidas.

Pude mesmo verificar que uma delas estava estacionada no parque do ministério, ostentava uma sirene no tejadilho e desempenha as importantes funções de viatura de segurança do camarada ministro, contra a reacção e o imperialismo. Ao mesmo tempo que o camarada Chefe de Gabinete me garantiu que nenhuma delas nos seria devolvida e que, como podia confirmar, ambas se encontravam a ser bem utilizadas, ao serviço do povo. E me sugeria ainda, com elevado espírito revolucionário, que escrevesse esta carta e fizesse a oferta de ambas ao povo e aos superiores objectivos da revolução popular.

Nestes termos, como procurador do grupo que represento, tenho o elevado prazer e a subida honra de solicitar ao camarada ministro que, em nome do povo angolano, aceite esta oferta e, de acordo com as suas superiores capacidades, coloque as referidas viaturas ao serviço do povo e da revolução, como melhor entender.

A luta continua, a vitória é certa.

O camarada Kapango recolheu o sorriso e dobrou meticulosamente a carta, que introduziu no envelope já endereçado, que também tinha sobre a secretária. Fechou-o cuidadosamente, utilizando um pequeno tubo de cola que guardava numa das gavetas. Depois levantou o telefone e, quando o camarada telefonista atendeu, perguntou-lhe pelo camarada estafeta e pediu-lhe, muito obsequiosamente, que lhe dissesse para lhe levar o livro do protocolo.

Numa das linhas, à mão, inscreveu a data, a hora, o destinatário – o próprio camarada ministro da defesa – e fez um rabisco a fazer de rubrica. E pediu ao camarada estafeta para ir ao ministério da defesa – o antigo quartel-general colonial, fazer a entrega da carta e recolher no livro a respectiva assinatura comprovativa. Surpreendido e curioso, não se conteve o camarada estafeta que não perguntasse:

Mas o camarada Kapango conhece o camarada Ministro? Fala com ele?

Ao que Kapango, branco, representante do grupo multinacional apenas retorquiu:

Sabe camarada, quando se trata da revolução popular, devemos conhecer toda a gente, saber mesmo quais os caminhos que ela exige e que os camaradas mais responsáveis nos vão indicando, quando precisamos.


E o camarada estafeta seguiu, sem pressas, a cumprir a sua tarefa.

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