A manhã ia a meio
A manhã ia a meio quando o
camarada, branco, Josua Kapango,
empurrou a porta do gabinete e entrou. O sol alto inundava o espaço, vindo da
janela em frente, que dava directamente para a rotunda, de onde subia a rua que
levava ao velho largo da Maianga, talvez cerca de um quilómetro acima.
Contornou a secretária e sentou-se. Ajeitou-se na cadeira, à procura da posição
mais confortável. Como fazia sempre, pegou numa esferográfica que repousava
sobre o tampo. Depois na carta dactilografada em papel timbrado, com o logotipo
do grupo multinacional, impresso a vermelho no canto superior esquerdo da folha.
Leu a carta. Voltou a pousá-la sobre o tampo da secretária e assinou-a, com mão
firme. Uma assinatura ilegível, com traço seguro e aspecto elegante, terminando
num arabesco que subia no papel e que atravessava as últimas linhas de texto.
Pegou na carta já assinada e leu-a de novo em silêncio. Depois abriu um sorriso
largo mas prudente.
Sua Excelência o Camarada Ministro
da Defesa
Luanda
República Popular de Angola
Camarada Ministro,
Apresento as minhas
saudações revolucionárias e agradeço o espírito socialista com que o camarada
Chefe de Gabinete me atendeu, ontem à tarde, nos jardins do ministério, sob a
atenta vigilância dos camaradas de guarda.
No seguimento da conversa
que tivemos, facilmente compreendi a natureza revolucionária do acto com que
duas viaturas de propriedade da empresa que represento, e que nunca fechou os
seus escritórios, nem no período de transição antes da independência do país,
foram retiradas da garagem onde estavam recolhidas.
Pude mesmo verificar que uma
delas estava estacionada no parque do ministério, ostentava uma sirene no
tejadilho e desempenha as importantes funções de viatura de segurança do
camarada ministro, contra a reacção e o imperialismo. Ao mesmo tempo que o
camarada Chefe de Gabinete me garantiu que nenhuma delas nos seria devolvida e
que, como podia confirmar, ambas se encontravam a ser bem utilizadas, ao
serviço do povo. E me sugeria ainda, com elevado espírito revolucionário, que
escrevesse esta carta e fizesse a oferta de ambas ao povo e aos superiores
objectivos da revolução popular.
Nestes termos, como
procurador do grupo que represento, tenho o elevado prazer e a subida honra de
solicitar ao camarada ministro que, em nome do povo angolano, aceite esta
oferta e, de acordo com as suas superiores capacidades, coloque as referidas
viaturas ao serviço do povo e da revolução, como melhor entender.
A luta continua, a vitória é
certa.
O camarada Kapango recolheu
o sorriso e dobrou meticulosamente a carta, que introduziu no envelope já
endereçado, que também tinha sobre a secretária. Fechou-o cuidadosamente,
utilizando um pequeno tubo de cola que guardava numa das gavetas. Depois
levantou o telefone e, quando o camarada telefonista atendeu, perguntou-lhe
pelo camarada estafeta e pediu-lhe, muito obsequiosamente, que lhe dissesse
para lhe levar o livro do protocolo.
Numa das linhas, à mão,
inscreveu a data, a hora, o destinatário – o próprio camarada ministro da
defesa – e fez um rabisco a fazer de rubrica. E pediu ao camarada estafeta para
ir ao ministério da defesa – o antigo quartel-general colonial, fazer a entrega
da carta e recolher no livro a respectiva assinatura comprovativa. Surpreendido
e curioso, não se conteve o camarada estafeta que não perguntasse:
Mas o camarada Kapango
conhece o camarada Ministro? Fala com ele?
Ao que Kapango, branco,
representante do grupo multinacional apenas retorquiu:
Sabe camarada, quando se
trata da revolução popular, devemos conhecer toda a gente, saber mesmo quais os
caminhos que ela exige e que os camaradas mais responsáveis nos vão indicando,
quando precisamos.
E o camarada estafeta
seguiu, sem pressas, a cumprir a sua tarefa.
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