1 de setembro de 2022

A mosca

Ontem à tarde, aproveitando a janela aberta e uma falha na segurança electrónica, uma mosca invadiu o apartamento onde vivo sozinho. Não se fez anunciar e não se dignou pedir licença ou saudar quem por cá estava que, naturalmente, era eu e os meus botões. Pelo contrário, desfez-se a esvoaçar pelas divisões da casa, descobrindo mundo, procurando filões de ouro, talvez preparando uma qualquer expedição colonizadora, como se tivesse memória do século XVI e acabasse de descobrir o Brasil. Não sou de melindres e não me senti ofendido, mas vi violada a minha privacidade e levantado o véu espesso da minha vida íntima. Não gostei.



Acabou por acoitar-se ao espaço mais sombrio da casa, aproveitando-se da semiobscuridade e da frescura dos restos de água nas bordas do lavatório, como se se estirasse na praia, atrigueirando a tromba e refrescando o corpo. Incomensurável descaramento do insecto, rasteiro e reles díptero braquícero, sem linhagem real ou de nobreza. Simplesmente abusivo, sem mais delongas nem adjectivos, como a escrita escorreita e hábil do saudoso senhor José Cardoso Pires.

Não foi preciso que eu falasse para que se apercebesse do meu desagrado e voasse em silêncio para as bordas do bidé, julgando-se despercebida, como se o fizesse a trinta mil pés de altitude, entre o aeroporto de Heathrow e Varadero. Procurei uma pequena toalha, como quem empunha um bombardeiro que ruma aos céus de Hiroshima, com a iminente morte a bordo. Atenta, escapuliu-se para as longas margens da banheira, mudando de residência a cada instante, como personalidade política amada pelo sistema e temente a Deus e ao abraço da multidão.

Apanhei-a de um golpe, num desses curtos voos, como se a toalha fosse um dos mais imprevisíveis e camuflados aviões de caça. Tombou, como se tivesse sido engolida pelo cogumelo atómico, aos trambolhões, ferida de morte pela explosão radioactiva da toalha. E acabou a despenhar-se no chão frio da tijoleira, de corpo inteiro, perfeitamente identificável pela família que a reclame para um funeral digno e religioso, se for o caso, e se as moscas domésticas tiverem um ser superior em que acreditem. Lá jaz imóvel, de borco, em decúbito dorsal, como se fizesse parte de um poema de Manoel Bandeira. A vassoura lhe seja breve e rápida. Por mim, tenho a privacidade restaurada.

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