O peso das palavras
1. Alimento
Eu não tenho à mão nenhum
exemplar da Aparição, de Vergílio Ferreira, para poder confirmá-lo e dar rigor
à referência. De forma que tenho de me socorrer da memória, falível, sempre
curta e cada vez mais volátil e incerta. Creio todavia que no fim de um dos
capítulos, não sei a que propósito e sobre o sentido das palavras, ele se serve
do vocábulo alimento.
Dizemos alimento e sabemos
de forma substantiva o que dizemos. Não nos fica nenhuma ambiguidade, não nos
restam quaisquer dúvidas, não precisamos de esclarecimentos complementares. Mas
experimentem dizer repetidamente alimento. Alimento, alimento, alimento. E reparem
como a palavra perde sentido e significado. Vai deixando progressivamente de
querer dizer seja o que for. Após algumas repetições alimento já não quer dizer
nada, já não tem significado.
2. Chéquia
Dita assim, isolada, a
palavra não tem sentido e parece não querer dizer coisa nenhuma, ao contrário
de república checa a que o tempo e o uso nos habituaram. É mesmo pior do que
dizer países baixos, a que vamos tentando habituar-nos, ficando no fim sem
saber o que chamar aos seus nacionais. Não faz sentido chamar-lhes holandeses e
é obtuso dizê-los país-baixenses, ou baixeses, ou baixios, como quiserem.
Mas dizem-nos que é um país.
Que todavia não associamos a nenhuma idade da história nem tão pouco a nenhum
continente. Qual é a capital que tem, como se chamam os seus cidadãos?
Chéquios? Cheques? Com provisão, sem provisão? Nunca nos passou pela cabeça ir
lá e não sabemos se lá chegam os aviões, os comboios ou os autocarros de
turismo. Têm uma língua própria, um alfabeto, sabem ler e escrever? Andam
vestidos? Têm praias, palmeiras, água de coco? Por favor, ninguém quer ir a um
país com um nome destes.
3. Resiliente
É palavra utilizada em todas
as circunstâncias, em qualquer lugar, por qualquer pessoa, debilitado
contribuinte ou imune deputado indicando à pátria, do alto da tribuna e da
infalibilidade, o caminho da salvação e o sítio ideal para o aeroporto de
Lisboa. No dicionário Editora de 2010, com que vivo em comunhão de mesa e
habitação, mesmo sem a santa bênção do senhor abade, resiliente é o que possui
resiliência, relativo a elasticidade, elástico, flexível.
Para mim, pronto, concedo, é
no mínimo uma embirração, uma palavra abominável, mais do que o lendário homem
das neves, que se usa sem se saber sequer o que se quer dizer ou mesmo por não
se querer dizer nada. Ou alguém acha que é resiliente por ter energia potencial
acumulada quando é deformado elasticamente, se for elástico? Não creio que haja
alguém tão complexo e tão completo e que não seja capaz de escrever português.
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