Variações intemporais sobre o conde e a festa grande
Estava o senhor conde D.
Afonso posto em sossego, na sua larga e bem talhada cama em pedra de Ançã,
quando o sol já subia pelo céu azul debruado por nuvens brancas. Fresca corria
a água na fonte, entre arcos de ogiva perfeita, enchendo os tanques onde os
animais vinham dessedentar-se para o tiro e para o trabalho. Silenciosa e vazia
estava a colegiada àquela hora em que o sacristão revia os paramentos e
actualizava o cochilo. Deserta ainda a taberna no adro, onde o taberneiro
repousava a testa sobre o tampo das mesas e sonhava com a venda da ginjinha e o
tinido das moedas na gaveta.
O toque das ferraduras na calçada, atravessando as portas da vila, veio interromper a melodia da água fresca e o sono breve do sacristão. Garboso, vestindo Prada, montando a sua elegante égua russa, estava o sempre fiel e dedicado Martim Anes Bucifal, em traje de cerimónia e calçando luzidias botas altas de montar. Com um gesto breve e único do freio fez estancar a montada e pediu para ser anunciado ao senhor conde, mesmo que isso lhe prejudicasse os afazeres e a meditação, porque era solene a sua visita e o seu intento.
Não tardou o senhor conde em
receber o seu dedicado amigo, vindo do fértil vale do Olival, onde pontificava
um laborioso povo dedicado ao trabalho e temente a Deus Nosso Senhor. Foi caloroso
o abraço que trocaram e muito próximas as palavras com que se saudaram. E o
senhor conde convidou a que se sentassem, pedindo ao ordenança, vestido como se
fosse um guarda suíço, que lhes trouxesse água fresca e uma ginjinha, além do tira-gosto
para a jornada. Solícito o ordenança abalou a cumprir ordens e, de mesmo, abriu
de par em par as janelas ogivais que davam para o castelo e para o vale onde
pelos campos ia crescendo o milho, viçoso e de espiga prometedora.
E da sua missão disse Martim
Anes Bucifal que ali estava em representação do Olival e de toda a sua leal e
fiel população para humildemente solicitar ao mui nobre conde de Ourém que se
fizesse presente na próxima Festa Grande, cujos preparativos prosseguiam com
afinco, na esperança de ver satisfeita a sua pretensão. Estavam adiantados a
decoração do adro, o palanque para a filarmónica, os andores para a procissão e
a barraca para a quermesse, recheada de úteis e variados prémios vindos da república
popular da China. Os bolinhos seriam os tradicionais para carregar fogaças e
andores e a gastronomia incluiria a sopa de verde e o carneiro guisado com
batatas.
O traje? Naturalmente de passeio, que a festa é popular, sem necessidade de marcas ou de costureiros de Paris. E, mais ou menos, é que já assim foi no domingo passado. Salvo seja!
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