14 de janeiro de 2023

Luuanda

 O escritor Mário de Carvalho, que não conheço pessoalmente e que condescende em ser meu amigo no feicebuque, publicou na sua página, um dia destes, com a sua fina e cortante ironia, a seguinte questão:

Para os mais velhos: Amochar com o salazarismo. Como vos foi possível?

Fiz-lhe um comentário: Por mim - e seguramente pela maioria - não houve alternativa. Nunca esquecerei os problemas que o Luuanda me causou.

Retorquiu-me: Conte, conte, p.f....

Então pronto, conto.


Meus heroicos vinte anos. Do inspector Mário César Ferreira, de quem ainda por aí vai algum rasto, envergando calças e blusão de couro preto e batendo com a mão cerrada sobre o peito: eu, que sou fascista. Usando a minha verde ingenuidade para paternalmente me avisar dos malefícios das viciosas companhias e dos sólidos méritos literários e patrióticos do Dr, Amândio César. E eu jovem, de peito aberto ao sonho, mais ingénuo do que o olhar com que o fixava, completo ignorante de tudo, sem saber de nada, sem afinal conhecer ninguém. Da revista domiciliária ao quarto alugado, onde guardava uma mala de trapos e uma caixa de livros, e à noite repousava o corpo, levaram-me um livro apenas, O Mar Morto, de Jorge Amado. Escapara-me ao esmerado zelo com que previamente apartara tudo o que pudesse cheirar a subversão e a crime de lesa pátria. Para em lugar seguro poder acautelar os veículos da minha leviandade inconsciente, no mofo do fundo de um armário de caserna.

E eu, por uma vez na vida, crítico literário insuspeito e encomiástico, escrevendo sobre Luuanda no bissemanário da terra, planalto africano onde nascem os grandes rios. Já viu? O branco é sempre mau, nunca faz nada de bom. E não, eu não vira nada, aquilo tudo era eu por dentro e por fora, sem cor e sem malícia, o meu todos os dias. Tanto que, sob pseudónimo, pusera o meu Zé Sapalo, domingo à tarde, cavalgando a bicicleta Hopper a caminho dos subúrbios da Bomba, para o seu meio litro de aguardente de fabrico ilegal, para a bebedeira e para as muitas quedas no regresso a casa. O meu saudoso Emílio, de vida mais experiente e longa, na redacção, a exultar, é isto, vai para a edição de quinta-feira.

Sabe quem é o Elói Cortez? Não, não sabia, nem ouvira falar. Mas lera, uma rudimentar descrição das peripécias do Zé na sua tarde de domingo, imitando Luandino, à força recolhido ao sol do Tarrafal, arquipélago de Cabo Verde. Então pronto, tens nada com isso, escrevi, agora vou. Mas nós sabemos muito bem quem é! Sim? Então para que me perguntam? Não ficarão a saber nem mais, nem melhor do que aquilo que já sabem. Pois, você é novo, você não sabe. Mude de companhias, rodeie-se de outros valores, facilitamos-lhe os contactos. Gente sem mácula, culta, patriota, temente a Deus. Pronto, aqui tem, assine aí na última linha.

Eu ainda, ingenuamente inocente e grosso. Primeiro tenho de ler tudo. Aqui não foi assim que eu disse. E ali, e acolá também não. É preciso corrigir, fazer as ressalvas necessárias. Sim, claro, quero alterar. Pronto, agora sim, é aqui que assino? A saída, seis horas depois, às oito da noite, posso ir me embora? Como militar fora a apresentar-me com guia de marcha, vai fulano de tal, para os efeitos tidos por convenientes, apresentar-se na polícia não sei quê de defesa, etc e tal. No quartel o comandante, um coronel, recomendara-me, vens cá para me contar tudo, quero saber em que te meteste, vou ficar aqui à tua espera. Não vou para casa enquanto tu não vieres. E fui.

Perdi o Mar Morto, nunca o recuperei. Nunca conheci o Dr Amândio César e nunca senti que tivesse precisado dele. Na revista domiciliária não tinha comigo nenhum exemplar do Luuanda, da meia dúzia que mão amiga, por favor, me fizera chegar, todos tinham tido destinatário. Um pequeno livrinho, pela primeira vez, dizia as coisas numa linguagem diferente, era esse o mérito de Luandino. Que, pelo caminho, recusou o Prémio Camões e continua vivendo, creio eu, no seu exílio de Vila Nova de Cerveira. Tem oitenta e sete anos.

 

 


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