8 de junho de 2023

Solilóquio por um amigo

Não sei quando ou como nos conhecemos, mas sei o que nos foi aproximando na vida. A tua natural e espontânea humildade e a sinceridade do teu olhar claro e longo. O corpo, franzino e frágil, capaz de uma resistência sem limites e de uma entrega sem condições. E a inteligência, repentina e ágil, explosiva e imediata, chegando aos pontos mais recônditos e distantes daquilo que sabemos. E sempre a mesma alegria sem máscara, o mesmo riso aberto, o mesmo espírito solidário dos amigos de peito.

Dias atrás chegou-me uma fotografia e uma pergunta: conheces? Confesso: não fui capaz! E, depois de saber de quem era, lá fui, a custo, descobrindo alguns traços que o tempo e as circunstâncias, apesar de tudo, não alteraram de todo. Quis saber de ti, como estavas, por onde andavas, como poderias ser contactado. O nosso último contacto teria sido à mesa de uma esplanada, na Quinta das Conchas, onde moravas, alguns dez anos atrás. Não funcionou nenhuns dos números que tinha comigo e, a pedido, um novo contacto me chegou.

Demoraste a atender e fizeste-o de modo atabalhoado, como que estremunhado, ia a tarde a meio, e poderia ter-te interrompido a sesta vespertina. Perguntei quem eras e devolveste-me o apelido para não mais te enquadrares com o discurso. Não foste capaz de me dizer o local onde estavas ou a morada que tinhas, embora convidando-me a que aparecesse para conversarmos. Pareceu-me descortinar algum débil entusiasmo quando te disse quem era, mas pareceu-me apenas isso. Fiquei inquieto e mais inquieto andei estes dias. Tinha de ir visitar-te, precisava ver-te, fazia-me falta falar contigo.

Cruzávamo-nos no passeio, quando regressavas do almoço, arrastando o corpo e o cansaço. Respondeste quando te chamei pelo nome, sem chama e sem entusiasmo, com o olhar baço perdido no fundo dos olhos envelhecidos e conformados. Nunca disseste um nome, nunca referiste um facto, nunca mencionaste um local. Sendo tu, não eras tu, não estavas lá, já não sabias de ti, nem de ninguém, nem de nada. Estranhamente apoderou-se de mim uma calma tranquilidade, cessou-me aquela inquietude dos últimos dias, não me sobreveio nem o desalento nem a revolta. A nossa geração, Armando, tem-nos deixado pouco a pouco, sem estrépito e sem anúncio prévio. Quase já não temos memória de nada, quase já não temos memória de ninguém. Quase já não cedemos ao desalento, quase já não temos força para a revolta. Onde está a tua força de viver? Onde estão os teus amigos?

 

 

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