África nossa
Quase abusivamente, aproveito esta conversa como se fosse um mote e corro atrás da tal África dela. Fica-me a um tempo um esquisito sabor tropical, doce e amargo, goiaba e maboque de Catete, terras de Icolo e Bengo. Embalo em recordações de tempos passados, os pequeninos bicos de lacre vergando a esguia robustez dos capinzais, a bola de trapo, duas pedras ao acaso limitando a largueza da baliza e a dimensão do golo. Me perdoe o muito diligente maschambeiro, aquela não é a África dela nem a África minha: é a África nossa, completa, de costa a costa, do Atlântico ao Índico, com um qualquer mapa cor de rosa em tempos colorido pelo meio, caminho da Índia, picante de pimenta, perfume de canela.
E naquele tempo, tão nova, apenas Alda estava morta na fatalidade do bloco operatório e logo às mãos de Orlando, seu marido de igreja e assinatura. Restaram de herança os poemas que o tempo lhe deixara escrever, com casuarinas debruando a beira-mar e com premonitório testamento. Há tanto tempo também já partido, ainda andavas tu, Ernesto, cronicando por terras do planalto, deixando a doer o perfume ácido das tuas picadas de marimbondo. Às vezes nos embarcávamos todos, directos para o Bailundo, com o Fernando acelerando naquele seu MGB-GT tão verde como folha de abacateiro. Entrávamos de assalto em casa do Sancho, mais venturoso pai de tanta filha bonita do que comerciante de sucesso comprando milho e vendendo vinho de barril, abrindo a casa, o coração e a carteira. Caprichando. Voltávamos pela noite, o pó levantado pela estrada de 80 quilómetros, nos portávamos como sendo miúdos sem juízo, tocando campainhas, batendo às portas, basando com o Fernando curvando de prego a fundo, os pneus a chiar, o polícia na esquina na desconfiança dele. O Miau - Edelfride o esquisito nome dele, nunca conheci outro, nem talvez devia haver - ainda que era o capitão vitalício do Portugal de Benguela, mulato de um metro e noventa, pata quarenta e seis, chuteira só por encomenda, metendo o pé, enchendo o peito, fazendo o árbitro de nome metro e meio lhe tratar de senhor Miau. Portugal de Benguela, nome de ironia, riso de sarcasmo, anos atrás dos outros que era por destino campeão provincial. Provincial que lhe chamavam, como se fosse do Minho, do Alentejo ou do Algarve. Esses nomes tão portuguesmente genuínos como Catumbela, como Quipeio, como Calomboloca.
Naquele tempo ainda todos conhecíamos como Cantinflas, aliás Rui Monteiro, aquele que acabou aliás se chamando de Manuel Rui, que também está no nome dele, enquanto foi misturando por Coimbra faculdade de direito e confusão. Sempre as calças de casimira cor de caqui, muito justas para cima, boca de sino para baixo, engomadas na perfeição, vinco de lavadeira velha e sabedora. Penduradas no fundo do cu, só osso, ele muito direito, comandando não sei quantos castelos da mocidade. Só o penteado destoava, aquele cabelo baixinho de carapinha, parece que toda a vida tinha carregado quinda de fuba em cima da cabeça. Lhe vi aqui, uns anos para trás, boina na cabeça escondendo a mesma carapinha de merda, falta de barba com quatro pelos simulando pêra de Ho-Chi-Min. Guardando na pasta o espírito revolucionário, os discursos do camarada Mao e o cheque dos direitos de autor. Na livraria Leitura, apresentando um rio seco de quinhentas páginas, o olhar sobranceiro de quem ganhou o prémio Nobel, vaidade na mesma sem nenhuma emenda. Sabes como é o mulato: não vale a pena, vaidade que nem me contes!
Quando escrevo isto, assim pratrasmente, me encho de uma saudade que me moi, me invade, me transborda. Dói e fere. Lambe a ferida e cura. Vou à procura de um LP que tenho guardado aí no baú, raridade de vinil antigo, ponho-lhe no gira-discos balouçando como barquinho de papel nas bacias de esmalte com água da nossa infância. Da Ópera do Malandro não sei quem é que vai cantando ai que saudade que eu tenho dos meus doze anos, ai que saudade ingrata. Mas gosto: sabe a África, sabe a espaço, sabe a horizonte até perder de vista, catuitis malucos voando por cima do capim seco. Camus é que tinha razão: a África é uma festa. Não sei mesmo é porque é preciso as pessoas morrerem com fome!
E naquele tempo, tão nova, apenas Alda estava morta na fatalidade do bloco operatório e logo às mãos de Orlando, seu marido de igreja e assinatura. Restaram de herança os poemas que o tempo lhe deixara escrever, com casuarinas debruando a beira-mar e com premonitório testamento. Há tanto tempo também já partido, ainda andavas tu, Ernesto, cronicando por terras do planalto, deixando a doer o perfume ácido das tuas picadas de marimbondo. Às vezes nos embarcávamos todos, directos para o Bailundo, com o Fernando acelerando naquele seu MGB-GT tão verde como folha de abacateiro. Entrávamos de assalto em casa do Sancho, mais venturoso pai de tanta filha bonita do que comerciante de sucesso comprando milho e vendendo vinho de barril, abrindo a casa, o coração e a carteira. Caprichando. Voltávamos pela noite, o pó levantado pela estrada de 80 quilómetros, nos portávamos como sendo miúdos sem juízo, tocando campainhas, batendo às portas, basando com o Fernando curvando de prego a fundo, os pneus a chiar, o polícia na esquina na desconfiança dele. O Miau - Edelfride o esquisito nome dele, nunca conheci outro, nem talvez devia haver - ainda que era o capitão vitalício do Portugal de Benguela, mulato de um metro e noventa, pata quarenta e seis, chuteira só por encomenda, metendo o pé, enchendo o peito, fazendo o árbitro de nome metro e meio lhe tratar de senhor Miau. Portugal de Benguela, nome de ironia, riso de sarcasmo, anos atrás dos outros que era por destino campeão provincial. Provincial que lhe chamavam, como se fosse do Minho, do Alentejo ou do Algarve. Esses nomes tão portuguesmente genuínos como Catumbela, como Quipeio, como Calomboloca.
Naquele tempo ainda todos conhecíamos como Cantinflas, aliás Rui Monteiro, aquele que acabou aliás se chamando de Manuel Rui, que também está no nome dele, enquanto foi misturando por Coimbra faculdade de direito e confusão. Sempre as calças de casimira cor de caqui, muito justas para cima, boca de sino para baixo, engomadas na perfeição, vinco de lavadeira velha e sabedora. Penduradas no fundo do cu, só osso, ele muito direito, comandando não sei quantos castelos da mocidade. Só o penteado destoava, aquele cabelo baixinho de carapinha, parece que toda a vida tinha carregado quinda de fuba em cima da cabeça. Lhe vi aqui, uns anos para trás, boina na cabeça escondendo a mesma carapinha de merda, falta de barba com quatro pelos simulando pêra de Ho-Chi-Min. Guardando na pasta o espírito revolucionário, os discursos do camarada Mao e o cheque dos direitos de autor. Na livraria Leitura, apresentando um rio seco de quinhentas páginas, o olhar sobranceiro de quem ganhou o prémio Nobel, vaidade na mesma sem nenhuma emenda. Sabes como é o mulato: não vale a pena, vaidade que nem me contes!
Quando escrevo isto, assim pratrasmente, me encho de uma saudade que me moi, me invade, me transborda. Dói e fere. Lambe a ferida e cura. Vou à procura de um LP que tenho guardado aí no baú, raridade de vinil antigo, ponho-lhe no gira-discos balouçando como barquinho de papel nas bacias de esmalte com água da nossa infância. Da Ópera do Malandro não sei quem é que vai cantando ai que saudade que eu tenho dos meus doze anos, ai que saudade ingrata. Mas gosto: sabe a África, sabe a espaço, sabe a horizonte até perder de vista, catuitis malucos voando por cima do capim seco. Camus é que tinha razão: a África é uma festa. Não sei mesmo é porque é preciso as pessoas morrerem com fome!
2 Comentários:
Obrigado pelo teu ping.
Foi um prazer ver o teu blog. Este teu post é de uma grande beleza porque cheira a saudade.
Abraço blogueiro
Puxa, agora quem se arrepiou, a ler o teu 'post', fui eu... que bonito!!! _ grande abraço, TD do 'chuinga'
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