30 de agosto de 2005

A urgência do aborto

Se este país não existisse tinha que ser inventado. Pelas mais variadas e antiquíssimas razões, a começar por D. Afonso Henriques e a terminar no celebérrimo José Castelo Branco. O primeiro, como se depreende, não teria tido nenhuma notoriedade, teria deixado Lisboa eternamente entregue aos mouros, Pedro Santana Lopes não teria sido primeiro-ministro, o Benfica nunca teria tido Manuel Damásio por presidente e o seu estádio nunca teria incluído uma capelinha das aparições. Quanto ao segundo viveria eternamente amarrado ao vulgar nome de José, não teria sobrevoado o Atlântico para aterrar em Nova Iorque e conhecer a sua Betty, nunca teria sido marchand de arte e muito menos apresentador de televisão. Muito provavelmente nunca teria sequer usado cuecas, mesmo sem marca e feitas de pano cru como as que antigamente produziam as Oficinas Gerais de Fardamento.

E senão vejamos! O país, ao menos geograficamente, ainda existe. De pousio, entregue aos incêndios e ao projecto de constituição europeia, sem banco emissor e com o Sporting afastado da Liga dos Campeões. A população vai diminuindo, não por força da emigração para o centro da Europa, mas pela redução do índice de natalidade, do progressivo envelhecimento e da morte nas estradas, sejam estas propriedade do Estado ou entregues ao liberalismo voraz do grupo Mello. O défice nem sequer é compensado pelos ciganos que nos chegam da Roménia, profissionais da mendicidade e do assalto aos terminais do multibanco. Tão pouco pelos chineses, diligentes e numerosos como formigas, incansáveis a abrir restaurantes e lojas de vender bugigangas que toda a gente compra e que, de facto, não servem para nada.

E de nada vale que, sensatamente, a igreja católica apele cada vez mais ao velho hábito de fazer filhos em casa em vez de ver telenovelas e prestar atenção às calhandrices das celebridades do jetset da linha. De nada vale mesmo que o patriarcado condene o uso do preservativo e a Santa Sé abjure a pílula do dia seguinte ou a prática do aborto. O país vive imbecil e feliz como se fosse uma das sete maravilhas do mundo, dizendo disparates e indo à televisão para as mesas redondas da Fátima Campos Ferreira. Os telejornais abrem com o regresso do primeiro-ministro da sua visita, oficial, ao jardim zoológico do Quénia, com o número de bombeiros e de camionetas colocados no combate ao descontrolo dos fogos e ainda com o gravoso problema que é a urgência que deve ser posta na realização de novo referendo sobre o aborto.

O país, deixem-me repeti-lo, é como os problemas: um e outros têm de ser inventados. Porque um país que é este, plantado no extremo mais ocidental da Europa, que não tem mais nada com que se preocupar senão com a regulamentação legal do aborto, é um país virtual, definitivamente varrido pelo furacão tecnológico dos últimos quatro meses. Nem Katrina nem meia Katrina! Furacão, verdadeiro e único, é este. Continuaremos a ver a população a envelhecer, sem estruturas, públicas ou privadas, que a acolham, sem cuidados de saúde, sem abrigo decente, sem sanitários e sem dignidade. Mas tendo as caixas de um computador fabricado algures em Singapura empilhadas no canto de um curral abandonado, que igualmente sirva de latrina virtual. Mesmo que não tenha telefone, mesmo que não tenha médico na freguesia, mesmo que não tenha cagadeira!

1 Comentários:

Às 6:55 da tarde , Anonymous Anónimo disse...

Com a população a envelhecer, parte dela em risco de abandono e fome, por falta de lares:
Mas vamos ter em Fátima, altar do mundo, uma nova, dispensável e inútil «catedral» de oito mil lugares, para honra de um arquitecto italiano e do padre governador da Igreja de Fátima.
Assim a modos que as dez «catedrais» do Euro 2004.
Falta a Ota e o TGV a ligar Lisboa a todas as capitais de distrito.
Nada a fazer.

 

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