Há mais de cem anos
Falo-te
daqui, deste lugar quase ermo, à distância imensa de mais de cem anos, onde
nasceu o futuro de tantas pessoas que ambos amamos e que o passado se foi
encarregando de soterrar. Há a mesma estrada estreita que sobe, o barranco ingreme
à esquerda, as ruínas do que foi uma casinha pobre à direita, meia dúzia de
árvores em volta, a chada entregue à erva daninha. Estão abandonadas as ruínas,
as oliveiras e a pequena vinha de que já ninguém cuida. O pouco chão arável
está de pousio, ninguém mais lá mora para fazer horta, o milho que dava o pão
que o diabo amassava deixou de ser semeado. Antigamente, no inverno, a estrada
era um caminho que descia por entre lamaçais até ao povoado, onde se atolavam
pessoas e animais. Os moínhos que recebiam o grão e o moiam foram abandonados,
as ribeiras secaram, o pão de trigo vende-se em qualquer lado. Assim haja
dinheiro, que vai faltando, para o comprar.
Tudo
o que conheceste ficou enterrado sob os anos longos que te levaram também. Nada
é o mesmo e não ficou ninguém para contar o que aconteceu. A escola desceu pelo
monte abaixo, deram-lhe uma casa nova, está ao abandono por falta de crianças
que a frequentem. Há camionetas que fazem num quarto de hora os caminhos que
percorreste a pé, tantas e tantas vezes, a caminho da aldeia, como lhe
chamavas. Foram elas que levaram todos os professores e toda a gente nova que
enjeitou a lavoura e a enxada, à procura de melhor sítio e de melhor vida. Isto
aqui é terra ruim, como Valgato, que não sei onde fica, nem já há Manuel da
Fonseca que mo possa dizer e a tua memória não sabe quem é.
Até
a igreja, a que tanto deste da tua vida, acreditando que isso daria melhor
futuro aos teus numerosos filhos, tão cedo orfãos de pai e tu viúva. Onde tanto
entraste, carregando a pobreza extrema na fragilidade da tua figura franzina,
expondo uma dignidade sem fronteiras no teu porte sublime e discreto, sempre
respeitada. Sim, até a igreja teve casa nova e ameaçou ruir durante anos. Por
vontade do padre teria sido demolida e, coisa estranha num povo velho e sem
saber ler, foi este que se opôs à ideia peregrina e santa, e não deixou. E que
se tem empenhado em salvar o que ainda o pode ser, reedificando paredes,
dando-lhes duas mãos de cal nova, consertando portas e janelas, chorando os
frescos do tecto que vieram abaixo com o púlpito de onde se pregavam todos os
sermões. E à frente da qual, pelo primeiro fim de semana de setembro, se
celebra sempre a Festa Grande, com os mesmos enfeites, simples, em papel de
seda, a quermesse, e se vendem os mesmos bolos ancestrais que os tempos
ameaçam.
Do
Carvalho da Bola apenas resta o local que já se esqueceu do nome. O próprio
cemitério se mudou, e disso ainda te deves recordar. Nele moras há mais de
cinquenta anos, a um canto que um cipreste protegia do sol e dos ventos
desabridos dos invernos longos, frios e chuvosos. Agora há apenas um arbusto
invasivo que plantaram na casa em frente, e que explode a cada verão, abraçando
tudo, espaços, caminhos, pedras. Este verão fui-me à aldeia e voltei empunhando
uma tesoura de poda. Atirei-me a ele, dei-lhe uma derrota mestra, abri-te de
novo o horizonte com que vives: um céu azul aqui e ali pintalgado pelo branco
de nuvens esparsas, como farrapos de algodão. Que este céu sem limites te
proteja, à falta da sombra esguia do cipreste!
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