Revolta geral
Ao
princípio da tarde o calor era sufocante, o seu peso abafado parecia ir
prejudicar a aproximação de pessoas e de ideias. Mas não há canícula que vergue
a revolta nem sol escaldante que vença a razão. Faltava a sombra acolhedora,
mas sobrava um céu azul sem nuvens, a determinação e a certeza de que, afinal,
é possível.
O
coração encheu a Avenida dos Aliados, de praça a praça. No sentimento
espontâneo das palavras de ordem improvisadas, no sentido das lágrimas vertidas
à dimensão do desespero, na natureza rudimentar dos cartazes empunhados,
reclamando dignidade, um futuro para os filhos, a qualidade de homens livres
para as gerações futuras.
Podem
ter sido os cem mil de que falam or jornais de hoje. Mas não foi um cartão
vermelho, mesmo violento, para o poder instituído. Não estava em causa uma
equipa de futebol ou um árbitro, estava e está muito mais do que isso. Está o
direito inalienável de participarmos na construção do nosso presente, do futuro
dos nossos filhos, da esperança dos nossos netos. A começar pela definição das
regras por que se deve reger a nossa vida coletiva.
Muitos
dos nossos direitos não podem ser delegados, ninguém pode ter competência para
nos representar e definir, em proveito próprio, as regras e a eternização dessa
representação. Para continuarmos a assistir à pouca vergonha e à falta de
decoro que a classe política exibe, perfeitamente consciente da impunidade dos
seus erros, negligentes ou dolosos. A mudança de governo é um simples meio, mas
não é um fim em si própria. O fim é a mudança de regime, a alteração das normas
apenas definidas por quem vai a jogo, a participação vinculativa nas decisões
de maior impacto e de mais ampla abrangência.
Não
fomos ouvidos sobre a adesão do país à União Europeia. Não fomos consultados
sobre a inclusão de Portugal na zona monetária do euro. Se o tivessemos sido,
provavelmente ontem à tarde as ruas das cidades não teriam transbordado de
gente carregando a revolta e o desespero. Tal como transbordaram!
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