Todas as palavras, poucas palavras
Nunca
se dizem todas as palavras, é impossível dizer todas as palavras. Não por causa
de leis, normas, regulamentos, decoro ou bons costumes. Não por causa do
vernáculo, das mães de família rigorosamente educadas em colégios de freiras,
com batas de xadrez azul e meias grossas de algodão a tapar-lhes os joelhos
para a ida à eucaristia. Não por causa do atentado ao pudor e com medo da
polícia, Miragaia sempre foi superior a tudo isso. E a Viela do Anjo sempre foi
a sala de chuto que se sabe, entre moedas recolhidas durante o dia, porras e
palavrões descendo pela berma da rua até à beira rio.
As
palavras todas não cabem em nenhum dicionário, nunca se soltam de nenhuma boca.
São torrentes de lava do vulcão dos Capelinhos, sereno durante décadas, pronto
a riscar do mapa toda a ilha do Faial, submergindo o verde dos caminhos e o
azul fresco das hortênsias. Galgando todas as barragens que se construíram no
leito dos rios, obstruindo canais, danificando turbinas e deixando às escuras
todos os sítios onde podem ser ditas sem luz que as aprisione. E quando se
julgam esgotadas ei las que brotam do teu colo, que espreitam provocantes do
meio dos teus seios, tão só sexualidade e som.
Não
há palavras suficientes para evitar nenhuma guerra, impedir genocídios, chegar
a tempo de suster o tiro e evitar o massacre e a ditadura. Cada homicida trás
uma cabeça cheia de intenções e um bolso a transbordar de palavras ocas de paz
e fraternidade entre os homens de boa vontade, prontas a despejar nas manhãs de
domingo sobre os fieis que se acumulam na praça de São Pedro ou que oram à hora
certa com o olhar procurando Meca no horizonte desconfortável de uma rosa dos
ventos ou nas contas dispersas de um terço.
Palavras
vulgares fazem de simples curiosos, ávidos de sucesso e pródigos em erros de
ortografia, candidatos a poetas celebrados, romancistas que nunca serão lidos,
potenciais vencedores do Nobel da literatura e companheiros de Neruda num banco
frente ao oceano, procurando-lhe a alma para além do rasto que deixam no ar os
aviões que levam a miséria de continente em continente, acima de trinta mil
pés, num sítio onde ele nunca esteve.
Não
acabam e não são bastantes todas as palavras e por isso se inventam novas a
cada estalar dos polegares. Nos gabinetes dos ministros e nas salas solenes dos
parlamentos onde se enfadam políticos, acompanhando as cotações da bolsa e
assinando leis que facilitem as despedimentos e promovam o emprego, enquanto
lhes cresce o saldo das contas bancárias e uma multidão faminta se aglomera aos
portões das suas casas de férias. Novas palavras que não cabem nas gavetas nem
se incluem nos dicionários, mas que jorram de bocas alarves e patriotas, sem
autorização de gramáticas ou de acordos ortográficos.
Nunca
se dizem todas as palavras e nunca são suficientes para dizer coisa nenhuma
todas as que habitam as páginas dos jornais, que bailam ao sabor das ondas
hertzianas e que saltam dos écrans dos televisores, invadindo as salas vazias
dos cafés e as romarias de verão. A dizer nos de tragédias e a contar-nos de
projetos e prosperidades virtuais que nenhuma realidade vai conhecer. Tudo
palavras a mais, mesmo quando não chegam para o nada que dizem!
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