Amanhecer
É
cedo. Sopra este vento frio da alvorada em que se te perdem todos os gestos e
todas as palavras. Não digas nada do que pensas até que amanheça e o brilho do
sol se erga no horizonte. E substitua a luz mortiça dos candeeiros que fizeram
da noite um sítio de quarto minguante. Depois de amanhã será lua nova, podemos
imaginá-la para lá de todas as nuvens que nos encharcam o chão onde espraiamos
os passos curtos. Só não quero que assim, de repente, seja lua cheia e as ondas
da praia-mar saltem por cima do molhe e arrastem barcos e detritos para além da
linha das marés.
Deixa-te
ficar nesta penumbra líquida que cheira a rosas e espalha pelo chão pétalas cansadas
de camélias. Descontrai-te, relaxa-te, espreguiça-te, deixa que a madrugada
seja já ontem e o teu corpo reste inteiro, macio e morno, perfumado e fresco.
Já não promessa, ainda não certeza, jamais passado. Deixa que o dia entre sem
pressa pelas frinchas da janela, te pouse na fronte, te ilumine o sorriso
seguro e certo, te enrole os braços esguios à volta do meu pescoço numa carícia
que me escorra pelo corpo ao ritmo sonolento da manhã.
Eu
sei! Para além do nosso desejo, mais dia menos dia, há de ser lua cheia, com o
mesmo rigor que vem nos almanaques que sabem tudo, das sementeiras às horas a
que o sol está por trás de nós e não o vemos. E será lua sem nuvens, rainha num
céu de estrelas, redonda e macia como veludo, espelho convexo de todas as
imagens surreais que se lhe passeiam à superfície, sem dimensão e sem destino. Afaga-a com o olhar meigo e longo como a
distância a que estamos dela e vê como o mar da tranquilidade se abre para nos
dar passagem, livre de peixes e de conchas, só pérolas em vez de areia, lodo e
ansiedades. Aconchega-te à berma do meu caminho, posso ouvir-te a respiração
como um sussurro vindo do outro lado do mundo, tão aqui, distante e próximo.
Sentir como o calor do corpo se te espalha pelo amanhecer e como um perfume delicado
e sereno, me invade as narinas e me inunda o pensamento. Como flor de tília em
tardes de verão. Afinal nunca é cedo demais!
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