Onésimo Silveira
Foi
assim como se fosse ontem, a meio de uma tarde amena, a mil e setecentos
metros, clima temperado de altitude como parece que dizem os geógrafos. No
Huambo, na livraria e papelaria Lello, entre uma caixa de lápis de cor e uma
sebenta, o meu amigo João Lara chamou-me a atenção para quem, vindo do lado da
Associação Comercial, atravessava a rua: sabes quem é aquele gajo? Entretido a
namorar os livros que moravam nas estantes, cujo custo era grande demais para o
meu bolso, tive de virar-me. As horas encurtavam-se para o sol que se apressava
a caminho do horizonte, balbuciei que não e ele disse-me quem eras e
perguntou-me se queria que te apresentasse.
Figura
de pequena estatura, franzina e frágil, coxeando, subiste os degraus e entraste
na loja. Lembro-me que estavas no Moxico, colocado nos serviços de saúde, e
tinhas ido fazer exames do sétimo ano ao liceu de Benguela, por tua conta e
risco. Se me lembro do que depois me disse o João, três cadeiras, dois dezoitos
e um dezanove. Diferente daquilo a que eu próprio me habituara, estudante a
tempo inteiro, convencido de que a poesia era também um caso de persistência e
que eu, naturalmente, ia chegar lá e legar à posteridade mais poemas do que
todos os heterónimos de Pessoa. Tu eras já gente crescida, nos relacionamentos,
na poesia, nos livros já publicados. Casa dos Estudantes do Império,
Imbondeiro, Bailundo, uma coleção de vida efémera. Mas conhecemo-nos ali, ao
balcão da Lello, e fiquei a dever ao João a naturalidade de mais um gesto de
amigo de sempre.
Perdemo-nos
no espaço e no tempo, deixei de saber de ti, eu próprio me mudei para Luanda.
Na bagagem sempre o mesmo gosto pelos livros e, à capa disso, a felicidade de
ter conhecido e convivido com gente mais velha do que eu, tendo um nome e coisas
já divulgadas, o que eu não tinha, nem tenho. Nem tão pouco por divulgar! Até
que um dia nos cruzamos na Avenida Álvaro Ferreira, a do hospital e do cinema
Restauração. Não nos reconhecemos e seguimos, mas alguma coisa me chamou a
atenção. Parei e virei me. Seguias na tua caminhada, coxeando, pé acima, pé
abaixo, ainda hoje o teu país te conhece, carinhosamente, pelo Coxinho. Gritei:
Onésimo! Viraste-te a ver quem te chamava e caminhamos ao encontro um do outro.
Abraçamo-nos e passamos a encontrar-nos amiúde. Falando de poesia, bebendo uns
finos, saboreando o picante apetitoso de umas kitetas à mesa modesta de
qualquer bar da cidade.
Depois
desencontramo-nos de novo e de repente, até hoje. Só o futuro e o boato me
falou de ti e dos teus destinos. Portugal, China, Suécia, delegado do PAIGC, os
boatos falando de alguns excessos, com a cobertura patriarcal de Amílcar
Cabral. Depois tudo mudou e soube-te de regresso a Cabo Verde. Presidente de
Câmara, embaixador em Lisboa – e eu sem te ter ido visitar! – alto funcionário
das Nações Unidas, de novo o Mindelo, para o descanso e o repouso. Vida cheia,
creio que pouco tempo para a poesia. Mas é por esta que te recordo, foi ela a
arma que empunhaste, foram as palavras os projéteis que disparaste!
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