Mano Zeca
Zeca, mulato de Benguela,
cresceu de tronco nu, chinelo de meter no dedo, correndo atrás da bola nas
areias da praia Morena, dando mergulho de chapa para a ir buscar no mar,
molhando a carapinha e refrescando o corpo suado. Naquela altura, com aquele
tamanho, o que interessava mesmo era o jeito de brinca na areia, a habilidade
para a finta, a rapidez do chuto para marcar golo, uma revianga igual à do Mané
Garrincha, um salto mortal, uma bassula com o inimigo a voar e a dar com as
costas na areia, toda a malta a rir, xingando, logo a seguir a vitória, tudo a
bater palmas, o aplauso. De resto, mulato não servia para nada, nem para preto,
nem para branco, o cabelo daquela maneira, aquela cor de café com leite, nem
precisa apanhar sol para ficar moreno, nem adianta ficar à sombra para ficar
branco. Digo eu que sou preto até de mais, por dentro e por fora.
Quando já tinha altura de
crescido e ficava desse tamanho mais ou menos, a escola acabava – aprender a
ler serve mesmo para quê, se não tem livro? – e adiantava arranjar um trabalho,
ganhar alguns angolares, comprar dez cigarros francesinhos, vendidos avulso,
arrumar um sapato, uma calça de boca de sino, a banga toda do vinco bem
engomado, ia na farra de sábado à noite, olhar as garinas sentadas nas cadeiras
delas, o merengue subindo no ar, puxar massemba no meio da sala, aí Benjamim.
Depois assim numa noite de março chegou a notícia do tal de terrorismo, por
entre as linhas do Intransigente, entrou em casa devagar, devagarinho,
atravessando a porta pelo buraco do gato. Que guerra não era palavra conhecida
na pátria – nome de barco grande para trazer os brancos do puto! – una e
indivisível, do Minho a Timor, sabia lá o que era isso, só conhecia mesmo a
Catumbela, as chitacas do Cavaco, os nomes do Cubal e do Bocoio, até que nunca
chegara no Huambo.
E nos entretantos da vida, Zeca
mulato, o sangue latino da mãe preta fervendo nas veias, cafeco do Cubal vindo
para Benguela para arranjar um trabalho e comprar um sapato, passou a servir
para alguma coisa e lhe mandaram de comboio mala para o Huambo, para ir na
tropa. Entregaram-lhe farda de cáqui amarelo, botas de engraxar, boné de por na
cabeça e até cuecas que ficavam em pé sozinhas, como candeeiro da rua. E quiseram-lhe
ensinar coisas que não tinha aprendido na escola, fazer contas, escrever carta,
usar gravata no pescoço, bater continência, conhecer o comandante mesmo de
noite, a dois quilómetros de distância. Aprendeu nada, escola do Zeca era mesmo
a praia Morena. Quando fez exame perguntaram-lhe que sólido geométrico é esse e
adiantou logo dizer que era uma medida de litro, mesmo com o kamba do lado a
lhe ajudar baixinho que era um copo de beber água e vinho. Depois veio um
sargento qualquer, já meio seculo de ter estudado muito, a dizer que era um
cilindro. Que não parecia nem com nada, nem com esse de pisar o alcatrão que
pintava de preto a avenida da granja, até no mercado, mas se ele disse que era,
é porque era mesmo.
Chumbou, nada de mais, era
até onde sempre tinha aprendido, nunca mais do que isso. Não ficou nem cabo, só
mesmo soldado raso, fardado de cáqui amarelo, boné na cabeça, bota a brilhar
até de noite, procurando a rebita nas noites de sábado, ouvindo merengue, as
ancas das garinas rodando à sua frente, trocando-lhe os olhos, a compostura do
militar que tinha de ser, a cabeça para cima, o boné em cima da carapinha.
Ganhou coragem, foi até às cadeiras como se fosse falar com o sargento de dia,
escolheu aquela que era a mais bonita, adiantou a pergunta, o coração a
bater-lhe no peito: a menina dança? A resposta veio de repente, como se o
mandasse de castigo todo o fim de semana: não, obrigado, já tem gajo!
Toda a noite Zeca não disse
nem mais uma palavra em português, mas repetiu tudo o que sabia de asneira em
umbundu aprendido na rua, escola da praia Morena. Nem interessa repetir aqui,
ninguém ia mesmo perceber o que era isso de tupariowe e todas as outras!
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