26 de fevereiro de 2016

O Aires Aldrabão

A Canata, escrito assim mesmo, com maiúscula, como nome de lugar, era um pequeno quimbo, mais ou menos a meio da picada de terra, com piso irregular e esburacado, que descia para o rio. O rio era um pequeno fio de água, correndo no fundo do ligeiro vale, contornando a base da encosta que se estendia na outra margem, num declive suave que teria menos de um quilómetro. A Canata, como povoado, era já uma coisa híbrida, termo desconhecido no vocabulário do lugar, uma mistura entre um dialecto e uma língua que tem dicionário e usa gramática. De facto as cubatas de adobe ou de pau a pique, cobertas de capim, iam coabitando com casas modestas, de paredes caiadas, construídas em tijolo ou mesmo ainda de adobe, mas cobertas a telha. Telha marselha, assente numa estrutura de madeira, onde se cruzavam ripas, traves e barrotes, escoando a água das chuvas frequentes. Que depois, a céu aberto, corriam para o rio e aumentavam a irregularidade do piso e a profundidade dos buracos.

O senhor Aires, cujo nome era sempre e naturalmente associado ao apelido de Aldrabão com que o quimbo o crismara, era um homem branco, de idade indefinida, seco de carnes, quase de todo carcomido pela tuberculose e pelo cigarro sem filtro – francesinhos, comprados em pacotes de quinhentas unidades – sempre pendente ao canto da boca, falasse, comesse ou estivesse apenas atiçando a fogueira que lhe esturricava os pulmões. Com o tempo seco quedava-se sentado à soleira da porta, silencioso, aspirando o cigarro e deixando libertar o fumo lentamente, como se Deus, omnipotente, o tivesse presenteado com uma chaminé no alto da cabeça. Enquanto seguia, com os olhos encovados e sem brilho, as nuvens de poeira que o vento espalhava pela picada e a liberdade do voo dos pássaros a procurar poiso nas hastes altas do capim.

E o apelido, Aldrabão, palavra que sugere uma origem bérbere, descrente e infiel, de onde surgira, quem o inventara, como lhe fora acrescentado à identidade? Para além do quimbo e da picada, todo o bairro o conhecia, pelo menos uma vez lhe passara à porta, ouvira falar dele e não sabia de quando no tempo lhe viera o nome e a muitos quase ficava a certeza de que lhe viera do berço. Mas a verdade é que o apelido não seria alheio à facilidade com que o senhor Aires inventava histórias mirabolantes e as contava, com a serena convicção que o catarro e os pulmões doentes lhe permitiam, com voz pausada, muitas vezes quase imperceptível, o olhar magoado e triste, a vida sem nenhuma matemática e com muito pouca e curta esperança. Não durou muito, e por uma tarde de um qualquer dia de trabalho, veio buscá-lo, para o levar a enterrar em campa rasa, encerrado num sobretudo de girassonde, uma furgoneta incaracterística, pintada de preto, com um padre piedosamente sentado ao lado do condutor. O apelido, e as histórias, ficaram para a posteridade e os miúdos ainda hoje as contam, mais mirabolantes do que nunca, enquanto riem alto e a picada continua descendo para o rio, transbordando da água vermelha das chuvadas.


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