À maneira de Bertolt Brecht, com Salgueiro Maia morto há 25 anos
Salgueiro Maia era capitão
num quartel de Santarém.
O quartel era todo dele?
Tinha sido ele a
construí-lo?
Sozinho?
Não tinha nem superiores,
nem subordinados?
Decidiu, isolado, marchar
sobre Lisboa?
E foi ele que fez a chaimite
que o levou,
Já com rodas e motor e
tanque cheio de combustível, pronta a disparar?
E foi a corta-mato?
Ou fez durante a noite uma
estrada directa ao Terreiro do Paço?
Vestiu uma farda que lhe fez
a mãe, que era costureira?
Montou ele o cerco que
obteve a rendição do quartel do Carmo?
E não quis nada em troca?
Que coisas ou cargos lhe
ofereceram?
Deram-lhe honrarias e
comendas?
Prestaram-lhe homenagens?
Deram-lhe senhas de refeição
quando precisou de uma esmola para a sopa?
Já que lhe recusaram a
pensão mínima,
Por nada ter feito que a
merecesse!
Ou recusaram-lhe um subsídio
para por meias solas nos sapatos?
E trataram-no como herói
enquanto foi vivo?
Cuidaram-lhe da mulher e
educaram-lhe os filhos?
Deram-lhe o nome a avenidas,
fizeram desfiles militares?
Promoveram-no a
sargento-ajudante?
E herói porquê? Só ele? E
porque não ele?
Foi ele que conquistou
Lisboa sozinho?
E que depois voltou para
Santarém para limpar o quartel e arrumar a caserna?
Ou foi para agradecer, à
míngua, os bons empregos que a liberdade deu aos outros?
Mandaram-no jogar à bola,
deram-lhe o nome a um aeroporto?
Baptizaram um avião,
fizeram-no padrinho de uma criança?
Morreu por vontade própria,
deixou-se morrer, suicidou-se?
E hoje mostram a sua
fotografia às crianças das escolas?
Ensinam-lhes o nome como se
fosse a tabuada?
Plantam estátuas suas à
sombra das figueiras?
E a vila de Castelo de Vide,
vista lá do alto,
Continua ao sol, indiferente
e branca, como o berço onde nasceu?
Com telhados vermelhos como
cravos,
Espetados nos canos das
espingardas?
Porque é que agora o
celebram depois de morto?
Porque já não mete medo nem
pode tirar cargos a ninguém?
Porque é inofensivo?
E acham que Brecht disse
tudo o que pensava?
Ou ficou muito por dizer sobre
um homem que não quis nada?
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