6 de junho de 2019

No 75º aniversário do dia D


Não teria sido necessário que houvesse um dia d
E seis de junho de mil novecentos e quarenta e quatro
Teria sido apenas um dia no calendário
Talvez com um sol brilhante varrendo a normandia
A anunciar a chegada do verão próximo
Não teria havido desembarque nenhum
E o mar estaria raso estendendo a espuma branca pela praia
Aguardando a instalação dos equipamentos para o veraneio
Ao longo daquela extensão de alguns oitenta quilómetros
Não teriam sido necessários milhares de aviões
Nem centenas de navios e milhares de barcos
E menos ainda mais de cento e cinquenta mil homens
Sem bolso para um mapa que lhes indicasse o caminho
Nem fé num deus que lhes prometesse o regresso a casa
E aos braços das suas jovens e ávidas mulheres
Em vez disso serviram-lhes um pequeno-almoço de madrugada
A que não faltaram nem as compotas nem a substância
Como se fossem condenados destinados ao cadafalso
E à morte nas águas frias e revoltas do atlântico
Com força suficiente para espalhar os mortos
Pela areia encharcada das praias
Como banhistas temporãos que não tivessem tempo de esperar pelo dia
Nem pelo sol do verão próximo
Ninguém terá contado os mortos um a um
Com o rigor que se exige à contagem das moedas nas caixas registadoras
Mas ficou a certeza de que foram muitos milhares
Tragados pelas águas frias da madrugada
Ou triturados pelo gume letal da metralha que toldou os anos em volta



Todo este tempo passado sobre aquele dia
Poucos são já os velhos que ainda sobrevivem
Curvados sob o peso das medalhas e das honras
Que lhes penduraram ao peito durante todos estes anos
E que apoiados a bengalas vão às cerimónias oficiais
Como se fossem ser expostos no museu do louvre
Nenhum deles sabendo se ainda voltará
Para as solenidades do ano que vem
Embora sabendo desde sempre
Que foram a guerra e a morte que os trouxeram até aqui
Com medalhas penduradas ao peito
E uma corrente de lágrimas escorrendo-lhes por dentro
Como evidência de que a guerra não tem vencedores definitivos
E de que a uma vida se opõe sempre uma morte
De um qualquer semelhante a nós
Que saiu na madrugada de um dia d qualquer
Para nunca mais ter nos olhos a ternura cândida dos filhos

Da guerra não ficaram apenas os mortos nas praias da normandia
Mas ainda os milhões que se enterraram pelos cemitérios da europa
Os que se cremaram nos fornos dos campos de concentração
Os que a neve soterrou às portas das cidades russas
Os que foram arrasados com os edifícios de hiroshima e nagasáqui
E todos aqueles cujo paradeiro nunca foi determinado
Para que as suas famílias se pudessem conformar com a tragédia
E chorar a dúvida e o infortúnio
E ficam ainda todos os que vieram depois da normandia
Da koreia ao vietname
Do afeganistão às verdes colinas de áfrica
Dos lugares sagrados da palestina
Aos lugares mais recônditos das terras do fim do mundo
Das margens do mar adriático
Aos contrafortes dos planaltos andinos
Ao som de poemas de amor e de canções desesperadas
E de um extenso cortejo de fome e de indignidade
A que falta a sorte simples de um pão e de uma caneca de água para beber

E sobramos nós todos vencidos e inúteis
Com mais de setenta e cinco anos de caminho
Fabricando armas e bolsas de valores
Fazendo guerras e fortunas obscenas
E olhando para milhões de vivos como se não existissem
Como se fossem mortos sem nome
Como se não revirassem o lixo à procura de restos putrefactos
Que lhes alimentem a ilusão de sobreviverem e de estarem vivos
Num qualquer canto onde o sol possa nascer numa manhã destas
[Duas referências, por gratidão e pelo uso de duas expressões: - a Ernest Hemingway, "As verdes colinas de África"; - a Pablo Neruda, "Vinte poemas de amor e uma canção desesperada".]