27 de outubro de 2021

Todos!

Portugal tem um parlamento onde se sentam duzentos e trinta deputados. Que uma vez eleitos - dizem-no os cérebros iluminados da ciência política - deixam de pertencer às freguesias e aos bandos de que provêm, passando a ser “deputados da Nação”. O que quer dizer que passam a ser deputados que acima dos seus interesses pessoais colocam os interesses colectivos, os interesses que se identificam com o todo nacional.

Quer isto ainda mais dizer que o interesse nacional os obriga a fazerem convergir as suas ideias e os seus projectos, os obriga a entenderem-se na prossecução do bem comum. E tal não se faz pela rejeição de quanto não seja nosso mas, mais do que isso, em conseguir soluções próprias que integrem ideias diversas, venham de onde vierem e quando vierem.


Os duzentos e trinta deputados da Nação não foram capazes de construir um orçamento aceitável para o ano de 2022 que persiga o bem comum. Limitaram-se a considerar péssima uma proposta do governo e este a rechaçar como péssimas as ideias alheias, viessem de onde viessem, quando as houve e se as houve. E assobiaram todos para o lado, à espera de virem a ser reconduzidos em eleições intercalares para continuarem a arrecadar os proventos e as mordomias do lugar.

De modo que, enjoado com a latrina e com o mau cheiro, daqui, de onde houve nome Portugal, da maneira diferente como se fala aquém Douro, quero apenas dizer-vos alto e bom som: não serei eu a eleger nenhum de vós. Ide-vos foder. Todos! Os duzentos e trinta! 

18 de outubro de 2021

Minha Mãe, no dia dos teus anos

 

É o teu silencioso sorriso que de manhã atravessa a rua e me inunda o sono inquieto e breve. E de repente ergue-se um sol macio a cheirar a mosto e a dourar a parra que ainda pende das vinhas. Cento e dez é um número redondo e certo como se estivesse suspenso na portada onde começa a longa escada. Chega-me o latido esganiçado de um cachorro rafeiro que abre o caminho entre o orvalho da erva e o canto matinal dos pássaros alçando do ninho. Abre-se-te o sorriso branco dos cabelos e o vinco solene das rugas que te escorrem da face eterna. Não precisamos de mais nada!



14 de outubro de 2021

Uma abelha na chuva

Por hábito, lançou os olhos às colmeias, que lhe ficavam mesmo em frente, dez ou doze metros, se tanto, e viu uma abelha voar da Cidade Verde. Baptizava as colmeias conforme as cores de que as pintara, Cidade Verde, Cidade Azul, Cidade Roxa. A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.



[Carlos de Oliveira, in “Uma abelha na chuva”. Um grande escritor, uma obra de referência na literatura portuguesa do século XX.]