30 de julho de 2016

O senhor Serrano

Desde sempre, em minha casa, ouvi falar do compadre Serrano. Acabei a conhecê-lo num domingo de verão, quase ao fim do almoço e também quase no termo da vida, quando nos entrou pela cozinha, recusou o convite para se sentar à mesa e ocupou uma cadeira de onde, estrategicamente, dominava por inteiro toda a sala e os pontos que lhe davam acesso. Era um homem pequeno e franzino, de aspecto frágil, com uns olhos vivos e inquietos, o olhar saltando como os pardais na eira, à procura dos grãos perdidos, o palavrão solto a cada palavra dita. Uma argúcia e uma inteligência invulgares, ocultas atrás da cortina de um tempo que o não deixara ir à escola e o mantivera analfabeto por toda a vida. Sempre agarrado a um varapau, que lhe garantia a protecção que a estatura meã lhe recusava, tinha a fama que ultrapassava os limites da freguesia, de homem valente e temível.

Fascinado pela variedade das situações e pela fluência empolgante do discurso, deixei cair o convite: da próxima vez que aqui vier, quero este homem sentado à mesa comigo. Rápido de raciocínio, não demorou na resposta, instantânea: e sou eu que pago o almoço. De lado, entendendo-me as intenções, minha mãe acrescentou: tens de trazer um gravador. Infelizmente a morte foi mais rápida do que eu e levou-o, antes do meu regresso e do almoço que, algures, ficou por fazer e a mesa por pôr. Mas ficou-me uma das suas histórias, transbordando do sentido terno de uma justiça natural e espontânea, que não passa nem pelas togas dos juízes, nem pelos bancos das faculdades de direito. E que vinha do tempo antigo dos seus vinte anos quando, acompanhado do irmão, se fizera ao caminho e viajara até França, à procura de melhor sol e de algum futuro.

Quase pelo fim do verão, quando o milho colhido ia acabando de secar na eira, à espera do malho, os seus pais embrulhavam-se nas tradicionais mantas de retalhos e pernoitavam junto às espigas, velando pela segurança do que lhes custara um ano de trabalho. Pela frescura de uma das madrugadas, terão sido tomados pelos irmãos ausentes e agredidos a frio, sem apelo nem agravo. Anos passados, numa chuvosa manhã de inverno, quando o Serrano se acolhia ao balcão de uma taberna da estrada que acompanhava a ribeira, alguém lhe chamou a atenção para um vulto que se aproximava, ainda distante. E lhe disse: vês, aquele que lá vem ao longe? Foi um dos que agrediu os teus pais, enquanto dormiam na eira, guardando o milho da colheita. O Serrano saltou para a rua, fez-se à chuva, apressou-se ao encontro do vulto que se aproximava. Já frente a frente, apenas lhe perguntou: que leis, que direito, que justiça te permitiram que espancasses dois velhos que dormiam, guardando o que era deles? Sem esperar pela resposta, um certeiro e único golpe do varapau deitara o agressor por terra e era ele próprio que, depois, acrescentava: para mim, complicado, podia ser derrubá-los, mas homem que eu apanhasse no chão, não se voltava a levantar. Não se enaltece a violência ou, sequer, a justiça pelas próprias mãos, apesar de outros tempos e de outras razões para todas as coisas. Mas é admirável o sentido de justiça que, muitas vezes, mora no espírito da gente mais simples. Como era o Serrano!


29 de julho de 2016

É preciso avisar toda a gente

É preciso avisar toda a gente, sair à rua, distribuir panfletos, escrever nas paredes, fazer sessões de esclarecimento, recolher assinaturas, apresentar uma petição ao parlamento, garantir que este aprova legislação adequada que nos proteja de todos os malefícios que nos trazem os velhos. É preciso chamar os bois pelo nome, sem equívocos nem eufemismos nenhuns, porque velho é velho, pronto, não é idoso, nem sénior, nem peste grisalha, nem merda nenhuma. É só velho mesmo. É apenas uma coisa fora de prazo, a que se deve dar o destino que se dá aos iogurtes que passaram da validade, evitando a infecção intestinal e a disenteria, a bem da saúde pública e da qualidade de vida a que temos direito, consagrado na constituição e nos tratados internacionais que já chegaram a Xangai.

É preciso rever o calendário, alterar as estações do ano, mudar o sentido dos pontos cardeais, proibir-lhes o verão, antes que nos chegue o dilúvio. Os velhos arrastam os pés, apoiados em bengalas de madeira que nos devastam recursos florestais e prejudicam o ambiente, ocupam as sombras das praças, sem licença das câmaras e sem notícias do bloqueio. Sentam-se nos bancos dos jardins públicos, com a cabeça entre as mãos magras, a olhar para o vazio, procurando o passado. Dão milho aos pombos que nos transmitem as epidemias e o desemprego, jogam à sueca como se praticassem uma ciência, rabujam entre si, desentendem-se e acabam dormitando ao sol, com a tristeza a adivinhar-se-lhes para lá das pálpebras cerradas pela sesta.

Os velhos atafulham a beira-mar, plantam guarda-sóis na areia das praias de bandeira azul, chapinham na água que lhes sobra das ondas, besuntam-se de cremes dos pés à cabeça, deixam pegadas marcadas na borda de água, prejudicam o justo descanso de quem pensa e governa o país, enxameiam as bichas para os restaurantes, onde se sentam tempos infinitos como se não houvesse relógios, a comer sardinhas assadas e salada de pimentos, sempre a queixar-se das artroses e do tamanho insuficiente das pensões de reforma. Os velhos são assim mesmo, uma palavra fugida do título de um livro de Miguel Esteves Cardoso. Como o amor!


27 de julho de 2016

No dia dos avós, com algum atraso

A meio da manhã de 3 de Janeiro de 1958, inesperada e estranhamente, o meu saudoso tio Quim chegou a nossa casa, parco de palavras, envolveu minha mãe num abraço prolongado e sussurrou-lhe ao ouvido, com uma tristeza tranquila caindo-lhe dos olhos: a nossa mãe morreu. A minha mãe, com a dignidade de sempre, simples e humilde, rompeu num choro profundo e silencioso que, mesmo contido, a iria acompanhar o resto da vida, até quase há nove anos. Por mim, na altura, pouco me disse a morte da minha avó Ana, entregue ao espaço imenso que em África basta para fazer as pessoas felizes, de fisga ao pescoço, tirando visgo das mulembas, montando armadilhas para caçar bicos de lacre, perseguindo catuitis de peito celeste pelo meio alto dos capinzais. De facto, ela pouco mais era do que a figura frágil, franzina e magra, austera e doce, de uma fotografia a preto e branco, presa numa moldura pequena, exposta no tampo de uma mesinha a um canto da sala, coberta por uma toalha de renda que chegava ao solo, revestido por um fresco e afagado cimento vermelho.

Os anos seguintes e a veneração com que minha mãe a idolatrou sempre, até se lhe ir juntar, vieram a ensinar-me um pouco da dimensão desta Ana Serradora – sem nunca ter descoberto de onde teria herdado o sobrenome – habitando um lugar periférico da freguesia, numa casa modesta, virada para a chada e para a estrada de terra, por onde desciam pessoas e carros de bois a caminho do centro da aldeia e da missa que se dizia diariamente, ainda quase de madrugada. Viúva muito cedo na vida, com cinco filhos espalhados na enxerga e um ainda crescendo-lhe no ventre, povoou de coragem e silêncio todos os seus dias e, não sei como, fez de todos eles pessoas adultas, acrescentando ainda ao seu curto património, alguns talhos em volta, mais algum vinho para venda, algum azeite para o ano, a engorda do porco para a matança, a salgadeira cheia para os desabridos ventos de Janeiro e para a duração interminável do rigor gelado dos dias de inverno.


Hoje, quando já mais ninguém resta do seu tempo, ainda a sua memória desce dos montes em volta, povoados de pinheiros, até ao centro decrépito da freguesia, onde a população envelhece, alinhada à porta do centro de saúde e os campos estiolam, entregues ao pousio. E, à sua figura frágil e franzina, se associa a dignidade com que sempre adorou o Deus em que acreditava, se entregou ao trabalho, protegeu os filhos e ganhou o respeito de todos e para sempre. Enquanto eu, que mal a conheci, dou por mim a escrever estas linhas, sem a intenção de nenhuma homenagem, com os olhos rasos de lágrimas e a alma completamente desfeita, porque sei que o pobre não tem direito a nada, nem sequer ao respeito de ninguém. Como também sei que ela era pobre e que o seu nome continua, apesar disso, a ser respeitado, numa freguesia que se vai extinguindo devagarinho.