30 de setembro de 2016

Não é por acaso que existe um espaço entre dois braços…

[Título: de um poema de Alice Queiroz, com uma vénia.]

Não, não é por acaso que existe um espaço entre dois braços. Não, não é por acaso que os olhos verdes dos gatos se aconchegam ao conforto morno dos regaços. Não, não é por acaso que o tempo e a vida se fazem e desfazem em tantos passos e cansaços. Não, não é por acaso que as curvas da estrada e do destino nos obrigam a frequentes paragens e compassos. Não é ainda por acaso que uma palavra solta, um suspiro ou um olhar mais longo nos causam embaraços.


Não é por acaso que tantos momentos passam tão depressa que não dão tempo para que no desenho se risquem todos os traços. Os traços rigorosos e perfeitos de um desenho de Cruzeiro Seixas, o vigor artístico dos braços e o rigor milimétrico dos espaços. Não, não é por acaso. Não, não é por acaso que a madrugada nos pode tirar o sono e fazer-nos os sonhos e a lua cheia em pedaços. Não é por acaso que muitas vezes nos apertam garrotes à garganta e os sentimos com a leveza meiga que aperta os laços. Porque fica sempre a imensa longitude do espaço entre dois braços. Para acolher todo o infinito que somos de ternura e dar o aperto necessário a todos os abraços.



26 de setembro de 2016

Digo manhã e abre-se-me a janela de par em par

Digo manhã e abre-se-me a janela de par em par. Há um nevoeiro denso que inunda todo o quarto, caindo do voo baço das gaivotas, à mesma hora a que se apaga a luz dos candeeiros públicos. É o sábado que chega. Com o outono tombando com as folhas mortas que vão enchendo o silêncio fresco dos jardins. Vão escasseando os velhos sentados nos bancos, com as pernas estendidas ao sol do estio e o olhar curto, preso às biqueiras dos sapatos. E vai sendo menor a assistência que segue atentamente os jogos de cartas, sabendo sempre qual é a melhor jogada e quem tem o ás de trunfo, sem prestar atenção à eminência do dilúvio.


Digo palavras e é noite escura. Há palavras que se soltam e que voam perdidas, sem destino, a que falta a ordem arrumada que lhes dão os dicionários. E o sentimento doce e amargo que lhes emprestam os poetas líricos. Depois, nada. Apenas a insónia breve, o olhar perdido no tecto branco do quarto. Nem uma ideia, um verso, uma rima, alguma substância para o jantar, um doce servido num prato de porcelana fina. Mas vai ficar um candeeiro aceso e um livro de poemas que mora sempre à cabeceira, disponível e solícito. Que se abre ao acaso, onde acontece, e se saboreia lentamente o poema, que não é só para comer.


25 de setembro de 2016

Poema para um domingo qualquer

A vida é isto, como um sótão, esconso e insalubre, escuro e húmido. Um lugarzinho a que se chega com esforço, à força de braço, uma escada de que se cai sem defesa, porque não tem corrimão nem degraus para descer. Um cão velho abandonado, arrastando os quadris pela berma hostil dos passeios da cidade, uma memória antiga do osso descarnado e seco, fugindo debaixo da mesa, até à distância de um canto. A indiferença sobranceira das manhãs de domingo, a caminho das missas que se cantam nas naves altas das igrejas. O repicar dos sinos, a solenidade hipócrita da hóstia, os paramentos dos dias de procissão, o recolhimento de cabeça baixa, a contrição da mão pousada sobre o peito, sentindo bater o coração ao ritmo preciso e certo de um relógio suíço.



A vida é isto, a morte com fome e sem culpa das crianças de África, a guerra que se faz em nome da liberdade, enquanto se leva às bolsas de valores o petróleo apetecível e fácil do Iraque!

22 de setembro de 2016

Amanheceste com um ar cinzento e triste

Amanheceste com um ar cinzento e triste. Um véu translúcido a receber-te o ocaso silencioso das lágrimas pequenas e persistentes. Um vento fraco correndo por entre portões, agitando-te levemente as vestes e pousando-te a humidade nos cabelos soltos que herdaste dos dias de sol. As folhas secas caindo suaves, como a chuva da manhã, fazendo-se tapete sobre o verde da relva que prescinde da rega. E se vai encharcando do tempo cada vez mais curto, até que o horizonte engula um sol discreto, encoberto pelos “stratus” que se confundem com o azul distante das marés.



Não se divisa o voo rápido e imprevisível das andorinhas e estarão desabitados os ninhos que construíram nos beirais. Voaram livremente para longe, num voo de vida, longo e necessário, ultrapassando rios e mares que lhes viram nascer as crias e que a elas se entregaram como primeira experiência. Sem elas, fica mais cinzento o dia e mais próxima a chuva que escorrerá pelos meses próximos. Mas há-de o deserto trazer-nos mais do que as areias indomáveis da tempestade e o frio polar que se liberta do gelo dos glaciares. Há-de voltar a ser límpido o horizonte, o sol despontando por entre a neve branca dos “cumulus” baixos e a encher os beirais com o calor necessário para o regresso.

17 de setembro de 2016

Já esta manhã sobrou um sabor morno sob os lençóis

Já esta manhã sobrou um sabor morno sob os lençóis e se soltou das torneiras um cheiro próximo do outono, que se aproxima do tempo que cai dos calendários de parede. Encoberto por uma neblina densa que se levanta dos rochedos, quando aí se desfazem as ondas que se formam a meio do horizonte. Dentro de pouco tempo a lua cheia irá emergir, pujante e inteira, do decote generoso da blusa que te veste, fará chegar mais alto e mais longe a amplitude da maré e fará mais curtas as amarras com que os barcos se furtam à rebentação e se forçam ao descanso, para poiso indiferente do voo vespertino das gaivotas.



Não será tempo de eclipses e isso não deixará que, de terra firme, nos vejamos ao espelho. E possamos atentar nos carreiros que o mar e os anos nos foram desenhando pela face, como se fossem uma completa rosa-dos-ventos, perfeito catavento sem norte fixo e sem declinação magnética. Mas será possível sentir na mão todo o sistema solar e chegar a constelações que, de outro modo, nunca sentiríamos a pender-nos da algibeira das calças, como se fossem um lenço fino de algodão, sem nenhuma necessidade da potência dos telescópios e dos complexos cálculos reservados ao domínio das ciências exactas.

13 de setembro de 2016

Discurso de uma amanuense dos registos

Eu, querida, quando chega quinta-feira, já acordo com o fim-de-semana a tirar-me a ramela dos olhos, uma fragrância de Givenchy a encher-me as narinas e o sol manso de Setembro a trazer-me a recordação das vindimas na aldeia. Quando o vinho se fazia com os pés, - que hoje só servem para o chefe e o público pensarem! – de calções, no meio do lagar, a olhar os rapazes de soslaio, os cabelos a caírem-lhes para a testa, a cheirarem a mosto e a apetecerem como vinho doce. E os pés persistindo a pisar as uvas, sem sair do mesmo lugar, uma concertina e uns ferrinhos dando música e ritmo à tarefa, um sorriso matreiro, uma gargalhada atrevida, uma grainha que se prende entre os dedos, um frémito a percorrer-me o corpo todinho.

Mas é quinta-feira, mesmo que cheire a domingo. O relógio de ponto implacável, a registar as entradas antes das nove, contando os minutos de atraso, um a um, obrigando a retardar a saída depois de um desgastante dia de trabalho. Estou aqui que já nem posso, mal me aguento em cima destes saltos de oito centímetros, os sapatos a apertarem-me os joanetes, as alças do soutien a marcarem-me os ombros que, sem vaidade, ainda são coisa de que não me envergonho e que se podem mostrar a quem chega com o apetite nos dentes. E tudo isto, a troco de um ordenado de merda, congelado há quase uma dúzia de anos, umas curtas centenas de euros que não dão para comprar roupas de marca ou uma sombra decente para o azul dos olhos, herdado do meu avô de Viana, que sabia de genealogia - ou lá o que é isso! - e dizia que tinha ascendência celta.

Olha, esta tarde apareceu-me pela frente um velho que, de jeito, só trazia um polo Lacoste vestido e um verde baço no fundo dos olhos cansados. Até acho que devia ser proibido atender esta gente, fora do prazo de validade. Deveriam mandar-nos uns trintões, que frequentassem o ginásio e a que pudesse adivinhar-se os músculos do peito e ver os bíceps rebentando as costuras da manga curta da camisa. Que não perguntassem nada, não tivessem dúvidas, não precisassem de nenhuma explicação e que nos enchessem o olho, cansado do bafio da repartição. E que me ajudassem a aguentar os sapatos nos pés e a não me preocupar com as marcas nos ombros, a espreitar por entre o descuido de um botão aberto no decote da blusa. Como se já fosse fim-de-semana!


9 de setembro de 2016

Nove anos sem ti

Era domingo de manhã e eu descera os primeiros degraus, quando o telefone me tocou no bolso das calças de ganga. E, de repente, faltou-me a escada e ruiu-me a vida. Silencioso, reentrei em casa e sentei-me à mesa. Os cotovelos apoiados sobre o tampo, a cabeça entre as mãos, os olhos enxutos, o sangue escorrendo-me por dentro, uma dor sem medida paralisando-me por inteiro. No dia seguinte fui a enterrar-te, pousei levemente a mão sobre a tua testa fria e chorei. Até hoje não parei mais e sei que não vou parar. De tempos a tempos volto à tua presença, mas és apenas uma pedra de granito polido, de um cinzento triste, com um sorriso adolescente, de noventa anos, soltando-se de uma fotografia que eu tive a felicidade de registar. Em volta, tudo mudou.


Ficou mais velha a freguesia e todos os lugares que a completam. Os correios fecharam, o padre morreu, a casa onde morava está ao abandono e ameaça ruína. Deixou de haver pároco residente e é o padre da freguesia vizinha que vem para a missa de domingo e, raramente, para os funerais de quem morre, porque já há pouca gente para morrer. A Festa Grande mantém os enfeites em papel de seda, a quermesse a sortear bugigangas sem préstimo e vive de meia dúzia de velhos teimosos, arrastando os pés e segurando o pálio, arremedando a procissão, e de outra meia dúzia de velhas, vestidas de branco, carregando à cabeça o peso das fogaças e a inclemência do sol.

Os bolinhos, com o inconfundível sabor a limão e a canela, continua a Gata a cozê-los no forno que tem na cozinha, onde tem pousada num parapeito uma fotografia contigo, que eu lhe ofereci numa moldura pequena. Fá-lo, mantendo aquele deslumbrante azul nos olhos, cansados por tantos anos de trabalho, e o discurso desbragado, em bom português, que faria Bocage corar de vergonha. De resto, fica o futuro dos velhos pendurados às soleiras das portas, as vinhas por podar, os campos onde cresce e seca toda a espécie de ervas e a azeitona que ninguém apanha. Gratificante, é a memória viva da Celeste – com os filhos já crescidos! – e daquela tarde, no dia de um teu aniversário, em que te foram levar o carinho de uma rosa apanhada à porta de casa!


7 de setembro de 2016

Que água azul, tanta e mansa

Que água azul, tanta e mansa, se alarga da transparência inquieta dos teus olhos. Transbordando de verde pelo junco das margens, onde se vêm acalmar regatos e ribeiras, pequenos pássaros balouçando-lhes nas pontas, ao sabor da aragem frouxa, que não há. Tudo verde, um verde persistente, pujante e líquido, à sombra do qual estremece um silêncio quieto e fresco, como uma manhã urbana no centro das cidades. As manhãs acesas das cidades, todas pintadas de azulejos nos passeios públicos e nas estações onde descansam os passageiros exaustos dos bancos da madrugada.



E pelas ruas correndo um vento quente, desfolhando papéis soltos nos tampos das secretárias, onde os funcionários públicos contam os minutos e preparam o expediente para despacho. Cada linha como um dia que passa, um verso de um poema lírico, desenhado com o rigor caligráfico de uma exuberante letra francesa, como se fosse um cartaz que anunciasse as celebrações da tomada da Bastilha. Um desenho rigoroso, que resultasse num belo soneto de amor, a voar leve, no bico de uma cegonha branca. Cada verso com a rima melodiosa e rítmica, a métrica com a exactidão decassilábica e tónica da perfeição dos sonetos de Camões!

3 de setembro de 2016

Pelo sol macio de setembro

Pelo sol macio de setembro as mulheres descem pelas encostas dos montes, trazendo a fartura das vindimas no regaço e o mosto doce enchendo-lhes o olhar aberto e extenso. A geometria poética dos socalcos morrendo, reflectida no rio de águas tardias que se arrasta pelo leito esculpido entre penhascos, acolhendo a ternura vermelha e quente do crepúsculo. Nada mais fica para dizer dos fogos que consumiram o verão e que marcaram de cinzento e fumo toda a paisagem que sobra como herança, que ninguém reclama, mas que amanhecerá por todos os dias curtos de outono, entrando pelo frio impenitente do inverno.



Até lá, será apenas a leveza elegante dos teus passos a dar ao vinho novo o sabor frutado que fermenta nos pomares, enquanto célere vai correndo o calendário e no fundo dos copos de prova se vai depositando um resto amargo e turvo. E no brilho fresco das manhãs, o sol vestirá rio e margens, deixando o vermelho saudoso da parra ir lentamente caindo por entre as horas das longas noites de lua nova.