28 de janeiro de 2017

Não faltes com a tua voz ao meu alvorecer

Não faltes com a tua voz ao meu alvorecer. A seguir a ti o dia pode construir-se sobre todas as coisas. A tua mão trazer ao parapeito da janela o rumo inquieto dos teus dedos. Libertar os beirais para a azáfama diligente dos teus olhos. Dar aos ponteiros do relógio o brilho do aço polido do corrimão da escada. Agasalhar a manhã que atrasa o desfile magnífico das camélias. E soltar o vento nas areias junto ao mar, onde repousa o sargaço sem apanha. Não penses nas águas que já passaram sob as pontes. Já não são nem chuva nem granizo. Só degelo, a levar os glaciares à latitude onde o equador corta o mundo em duas partes. Como se fosse uma laranja madura, sem sementes e sem sumo.



Não te escondas aquém de quanto queres, como se esperasses pela noite. A vida anda inteira pelas ruas, sem necessidade de crepúsculo. Nada adianta que te vistas, pensa na luz que se te liberta da garganta com cada pergunta que te faço. E não hesites nas respostas, porque há sempre um momento para tudo. É aí que se liberta toda a intimidade que tentas proteger. E que todas as dúvidas se desfazem. Tudo o resto são caminhos de cor, ladeados pela frescura dos aloendros. As bagas vermelhas decorando os ramos heróicos do azevinho. Enquanto persiste o frio solitário do inverno.

25 de janeiro de 2017

O sol ferindo a escuridão do teu silêncio

O sol ferindo a escuridão do teu silêncio. O sol nascendo-te na boca, dando cor ao perímetro dos teus lábios. O sol brilhando-te nos olhos, transbordando de sonhos. O sol iluminando-te a face tranquila. O sol atravessando-te os cabelos sedosos e revoltos. O sol enchendo-te o peito, pulsando-te no coração. O sol despindo-te em contraluz numa tarde de verão. O teu corpo à transparência do sol. O sol prateado nos repuxos dos jardins, os carreiros cheios de pombas. O sol harmonizando o repouso dos pardais e o voo rápido das andorinhas. O sol pousando nos teus passos, abrindo-te o caminho para a manhã de sábado e para o abraço. O sol preso aos dedos com que me aqueces as mãos e me seguras a inquietação. O sol no sabor quente dos teus beijos, em que se afoga a minha ansiedade. O sol no cheiro único do teu pescoço, ansiolítico para as noites frias de inverno, braços abertos para a carícia. O sol na sensualidade dos teus gestos. Todos, múltiplos, pequenos e grandes. O sol na fogueira do teu desejo, no compasso quaternário da tua respiração. Um sol sussurrado, um sol inteiro no teu ventre. O centro definitivo e completo do sistema solar.


12 de janeiro de 2017

Gostar de ti é dizer-to

Gostar de ti é dizer-to. E repetir-to, como um “chatinho”, até o ouvires. Tanto, tanto, até o perceberes. Tudo, até o saberes, sem reticências e sem dúvidas. É sentir esta manhã cinzenta e húmida a entrar pela janela. Confortar-me com o teu sono tranquilo, aconchegar-te à penumbra do dia e ao branco dos lençóis. Acariciar-te as pálpebras cerradas, para que um sorriso se liberte dos teus lábios. Trazer-te à cama o pequeno-almoço, numa bandeja só para ti. A chávena de leite fumegando, soltando aquele inconfundível aroma a quente e a café. As torradas afagadas com manteiga, ainda a derreter-se. Sentar-me a teu lado, na beira da cama, pousar a minha mão sobre a roupa que te agasalha as pernas. Ver-te comer sem nenhuma pressa. Ver-te sorrir e sorrir contigo. Perder-me no fundo tranquilo e meigo do teu olhar. Darmos as mãos e vermos a sol subir pela cor promissora da parede.


3 de janeiro de 2017

Regresso do ano bissexto como quem regressa a casa

Regresso do ano bissexto como quem regressa a casa. Degrau a degrau, fui subindo pelos dias, como se fossem uma escada. Um de cada vez, sabendo que a meta está sempre no fim do nosso olhar. E que há uma coroa de louros à nossa espera. Porque chegar onde se cruzam todos os momentos, é sempre uma vitória, mesmo quando não ganhamos. Uma medalha que nos brilha, pendurada ao pescoço, presa por uma fita toda azul e ouro. Como uma condecoração ou um poema épico. Para diante fica outra distância que se abre, um caminho que ambos vamos descobrir. Voando sobre a brancura das nuvens, com o sol soprando-nos de flanco. Trazendo um calendário novo na ponta do primeiro raio de luz. Todos os anos, mesmo os comuns, começam sempre por Janeiro.



Ergue a tua mão, dedos abertos como uma rosa-dos-ventos apontada ao dia seguinte. Um diamante lapidado faiscando-te no castanho certo e fiel das pupilas. Não sei a cadência a que te bate o coração ou que desejo macio ainda te sobra a meio da manhã. Quando o sol de inverno é um véu nocturno que se estende pelos palcos andaluzes. E no teu peito viceja o ritmo quente do flamenco que se eleva do aço dedilhado das guitarras. Um copo de vinho calando o segredo das gargantas, sem necessidade de palavras. Nem de vinho. Por baixo, o quadriculado mágico da viagem, em suaves tons de verde. Temperado com o sal líquido com que olhas o vazio. Fronteira para o azul que chega de ocidente, trazendo a suavidade da espuma e o destino premeditado dos cardumes. No sabor doce da saliva que respiras.