24 de dezembro de 2019

Natal


Antigamente o largo era o centro do mundo
E nele se juntavam os homens
Depois de dias presos ao cabo da enxada
O rosto tisnado pelo sol
As mãos calejadas do esforço
O olhar vazio de esperança
Depois o largo cresceu
Perdeu a sombra das árvores
E o chilreio dos pássaros
Vieram bancos novos pintados de vermelho
Onde se sentaram os homens
Que se fartaram da vastidão da jornada
E se cansaram da inutilidade da espera
Discutindo as dificuldades da vida
E a falta de pão para a caterva de filhos
Fizeram-se velhos
E foram partindo sem se despedirem
Depois das trindades soarem no sino da igreja
E do crepúsculo descer sobre a ladeira
Que escorrega para dentro da noite

Fez-se mais pequeno o mundo
Como se mais ninguém coubesse nele
E apenas numa seara
Amadurecessem todas as espigas da planície
Ondulando levemente ao sabor da brisa de poente
Tudo ficou mais fácil e mais perto
Quando se alargaram as estradas
Deixaram de nascer tantas crianças
E se começaram a fechar escolas
Por falta de alunos e ordens do governo
Ficou trôpego o pároco
Que a idade levou ao recolhimento num abrigo final
À espera da sopa da tarde
E do eterno descanso
Enquanto a china vermelha e branca
Com as garridas cores da vida
Deixou de ficar do outro lado do mundo
Como no tempo de Drummond
Envolta em distância e em mistério
E começaram a aparecer pelo largo
Homens de pele tisnada pelo sol de outras distâncias
E os olhos atravessados na face
Como se mirassem tudo de lado

Por dezembro nasceu no largo uma árvore mais alta
Do que os pinheiros da Escandinávia
Sem pássaros nem ninhos
E crivada de luzinhas de todas as cores
A piscarem de alto a baixo
Suportando milhares de vistosos presentes
Reluzindo no brilho artificial dos embrulhos
Feitos à pressa
Nos corredores dos centros comerciais
À custa de uma fúria consumista
Que endividou mais as famílias
E lhes tornou ainda mais incerto o futuro dos filhos
Longas e largas mesas se puseram
Transbordando das mais variadas iguarias
E dos mais finos doces
À sua volta tiniram os copos
Por onde correram encorpados vinhos
E perfumados licores
Se trocaram saudações
E se formularam desejos
Enquanto se ignorava a desumanidade
De que se enchem todos os dias do ano
Não houve neves que queimassem
Nem nos cumes dos alpes
Nem no cimo do kilimanjaro
Extinguiram-se da memória os fogos que correm pelo amazonas
E que alimentam os desertos australianos
Para que toda a gente fosse feliz com o que não tinha
Para que muita outra gente
Em muitos outros locais próximos
Continuasse feliz com tudo o que não tem


Não houve uma palavra para os sobreviventes de hiroshima
Nem para os deserdados do norte de áfrica
São negras e felizes as crianças a sul do sahara
Sem terem um espelho que lhes mostre a imaculada brancura dos dentes
A ramela seca nos olhos
E o volume desproporcionado do ventre
Sem um pão que lhes engane as paredes do estômago
Uma vacina que as proteja da doença
Ou um livro que as liberte da ignorância
E esta é a solidariedade que felizmente elas desconhecem

16 de dezembro de 2019

Vida igual de bagre


A minha vida parece do bagre, sempre no fundo do rio, no meio dos caniços, o esperto na cabeça dele para espreitar as minhocas na ponta do anzol. Se tem sorte adianta lhes comer, deixa o anzol com a água do rio a lhe lavar, vai-se embora no caminho dele. Se desconsegue tem azar, come a minhoca junto com o anzol, tudo na barriga, vai sair pendurado na linha de pesca, o rabo a mexer assim assim como rabo de lagartixa, acaba morto para assar no fogo, conduto de acompanhar pirão de logo à noite.


Até acho que vida de bagre nem tem isso de rir, sempre a mesma coisa lá no fundo do rio, nem sol de lhe poder olhar nem capim para lhe comer, ainda que está bem, bagre não é cabrito. Mas tudo assim sem barulho, nem nenhuma confusão, sempre que deve ser como de noite, sei lá se o bagre tem os amigos dele, sabe umbundu, pode conversar, ir na loja se tem, até beber meio litro quando é dia de domingo à tarde e ninguém trabalha por causa do benfica. Mas acho que não, bagre não sabe falar, no fundo do rio não tem igreja como no Canhê, não tem tempo para descansar, sempre no trabalho dele, daqui para ali daqui para ali, nem ao menos um loengo das quitandeiras.

Se não fosse acabar a lhe assar no fogo todo a arder, até que ser pescado era sorte do bagre. Sair do fundo do rio, tudo cheio de caniços a terra toda molhada de sujar os sapatos, sair fora da água. Ficar parado em cima do capim, o sol a lhe secar daquele banho todo, ir em casa quando fica de noite e as senhoras começam de chamar os meninos delas para ir comer a sopa e deitar na cama por causa da escola amanhã de manhã. Assim não sei se no rio tem cama e se o bagre também fica com o sono dele, a água fria sempre a lhe lavar os olhos. Mas deixa lá, é a vida dele, não adianta falar se não tens com isso.