25 de maio de 2019

África


Aprendi os meus passos
Nos caminhos do teu corpo
E as minhas palavras na liberdade dos teus pássaros
Ganhei a minha sede no tamanho das tuas anharas
Para depois a afogar no leito dos teus rios
Adormeci sob a cintilação das tuas estrelas
Penduradas na comunidade de um céu quieto
Ganhei distância na imensidão das tuas savanas
Tirei visgo da mulemba atrás da casa
Para caçar bicos de lacre nos segredos do capim
Cavei pau-cesse para fazer casa para passarinho
Apanhei grilo só para lhe ouvir cantar
E aprendi tuas músicas no fim da manhã
Quando a água vermelha da chuva corria nas valetas
E as quitandeiras subiam do kussava
Embrulhadas nos seus panos pintados
Os monas pequenos amarrados nas costas
Gritando as falas delas
É o gimorango gimorangué
Só meia cinco minha sinhora
Saiu mesmo agora dos lugar deles
Nem precisa pôr açúcar
É só lavar na água e lhes comer
Faz favor arranja um bocado de pão
Para a fome do monaiangue
Nome dele é francisco como o menino da loja
Que tem lá no kimbo quase quando chega no kewe
Onde o salalé adianta voar depois da chuva
E perder as asas dele no chão todo molhado
Anda compra tudo e vou já mimbora
Adiantar um bocado de pirão para os mais maiores
Que ficaram lá nem nada de comer
E um matete para o mona
Sempre a chorar a fome dele em cima das minhas costas
É assim a vida dos pretos


O bairro era uma rua de terra
Que chegava do kussava até na cidade
Os passeios também de terra
As casas de adobe
Lá dentro o canto para acender o fogo
Quando o tempo traz a chuva dele
E o cimento no chão
Às vezes não
Sempre muito de manhã
O senhor pacheco a passar em cima da motorizada dele
Acordando as pessoas e espantando as galinhas
O senhor loução carregando os barris vazios
Em cima do camião fargo
Deve estar mesmo mesmo
Para ir lá longe nas caçadas dele
Secar a carne e as peles dos bichos
E voltar sei lá quando
A barba grande
A camisa toda rota
As calças sujas igual com as botas

A carne pendurada na corda da roupa
As peles a lhes levarem na fábrica do mau cheiro
Para saírem uafina para fazer sapatos
Para o dinheiro dos brancos
A seguir a igreja ainda que não está pronta
Toda feita do tijolo que veio no camião
Uma parte mais alta do que um saparalo
Diz é para por o sino
Para avisar para a missa como na missão do canhe
E até às vezes eu já vi a menina do senhor loução
Vai namorar lá dentro
E depois volta para casa
Quando começa de ficar escuro

Quando cheguei à idade de sete anos
E fiquei maior do que o milho antes de ganhar maçaroca
Adiantei vestir meia branca e calçar sapato
E me levaram na escola setenta não sei quantos
Onde a dona maria não sei quê
Me mandou sentar na carteira
Ficar calado
E fazer com devagarinho as letras do aeiou
Nem lembro mais se tinha um preto lá dentro
Todos que tínhamos a bata branca vestida
E os miúdos sem tempo por causa de ir na padaria
Buscar o pão para o matabicho

Só mais velho veio o zé entrar na minha vida
E me ensinar o umbundo que não aprendi com a lavadeira
Até mesmo aquelas asneiras todas que não pode falar
Quando a sinhora está ali para ouvir
E isso tudo eu sabia lá se era áfrica se era o quê
Era só a nossa vida
Brincando no meio do capim
Eu branco e o zé preto
E os dois sem tempo para ver nada disso
Ocupados a fazer as gaiolas para os bicos de lacre





5 de maio de 2019

No dia das Mães


Mãe única, Mãe plural. Hoje só queria escrever-te o nome e debulhar-me em lágrimas, porque só isso te traz de volta. Quando tudo me vai faltando e mais me aproximo de ti, mais me dói a distância da tua ausência. E o teu silêncio, aquele silêncio de que nunca falámos, que não se aprende nos livros, que não se escreve, e que tanto fez por me traçar um rumo na vida. De resto, perdi-me de tudo e nunca acertei os meus passos com o voo das cegonhas. Mesmo que cada vez mais me deslumbre a imponência da sua envergadura, o estilo solene e elegante do voo e a ternura natural com que alimentam as crias no recato tosco dos seus ninhos. Mães cuidadosas que são, como todas as mães que entregam a essa condição todo o amor que não cabe nas palavras nem no tempo.


Depois fica-me a certeza de que cada voo é a rota extremosa de uma mãe que passa, porque todas as mães voam sempre, por todo o lado, em qualquer momento. Omnipresentes. Num rasto de luz que nada é capaz de impedir ou dificultar. Um voo de arribação, inquieto e rápido como o voo diligente das andorinhas, tecendo os ninhos nos beirais. Um voo vigilante da ave de rapina, perscrutando o solo à procura do menor perigo que possa esconder-se à sombra das árvores. O voo artificial de um avião de longo curso, com a imponência brilhante de um metal raro e a beleza de um concorde com asa delta, a mais de trinta mil pés, sentindo o calor que falta lá fora, respirando o ar que ali já não existe. E um dia, um dia do calendário pendurado no branco baço da parede da cozinha. Para te celebrarem hoje, como se tu e toda a tua dedicação pudessem mesmo caber no calendário inteiro. Mãe única, Mãe plural, Mãe sempre!