31 de março de 2015

Vou pelo sol claro desta manhã

Vou pelo sol claro desta manhã de primavera como quem vai serenamente pela suavidade do teu corpo, que a ternura morna da noite confiou ao amplexo dos meus braços, toque a toque. Dormes ainda, confiante e tranquila, os cabelos meio em desalinho, os olhos cerrados, o contorno dos lábios desenhado com a beleza dos raios solares que te chegam pelas frinchas das persianas da janela.

Pouso-te suavemente a mão sobre a cabeça e lentamente afago-te os cabelos sedosos, com receio de que o gesto possa despertar-te e a certeza definitiva de que te quero assim, inteira e completa, como se tu fosses toda a primavera que explode no verde novo da folhagem nos ramos altos dos plátanos nas alamedas e as papoilas vermelhas de vida que hão-de polvilhar as ervas rasteiras que se estendem pelos campos, cheirando a hortelã e maresia.


Continuas com a respiração quieta e silenciosa de quem está ausente na terra dos sonhos, nem cedo nem tarde, nem oriente nem ocidente, o corpo desnudo sob a transparência nítida dos lençóis que te protegem de todos os olhares com que te percorro todo o corpo e de quantos desejos possas sugerir, quando devagar te acomodas às horas altas da manhã e ao sono solto de que hás-de despertar. Quando o sol for mais alto.

29 de março de 2015

A caminho de Machu Picchu

Domingo de ramos, uns curtos dias para a páscoa, a procissão inca subindo por todos os carreiros de montanha que levam aos cumes de Machu Picchu, quando o degelo ainda engrossa o caudal dos ribeiros que se precipitam pelo abismo das encostas. As madrinhas que se acotovelam nas naves dos templos, enquanto entoam preces solenes para o acto, empunham terços de madrepérola e vestem de branco, os bolsos cheios de amêndoas de licor, à espera da saudação anual e respeitosa dos afilhados, crentes e gulosos.

O adro, amplo, da igreja, em secular e simétrica calçada portuguesa, que hoje decora as praças do centro de Pequim, como que desenhadas à pena com a precisão surrealista com que Cruzeiro Seixas libertava o pensamento à saída dos museus. Os ramos de palmeiras espetados à entrada, como se fossem pés de milho já na fase adiantada de deitar espiga e prometer pão, os raminhos de oliveira vendidos aos portões por emigrantes romenos, a um euro cada um, celebrando a paz universal e decretando, por consenso unânime, a libertação da Palestina e a quadratura do círculo.


Terminada a quaresma, o dia santo põe fim ao prolongado jejum e intensifica o combate à pobreza, por decreto, e por actos, doando vinte cêntimos para a esquálida sopa dos pobres que enregelam nos portais. E que morrem no inverno com a boca presa ao gargalo de uma garrafa de vinho, como se só dali sobrasse alguma vida para eles. Reunamo-nos à saída, findo o sermão e a eucaristia, a alma santificada com a hóstia e a água benta, e encaminhemo-nos para o substancial cozido à portuguesa que decerto encontraremos ao descer a rua dos caldeireiros. Não há nada como a consciência tranquila de ter praticado o bem e contribuído para alimentar os pobrezinhos!                                                                                                  

27 de março de 2015

A água da chuva não te seca a roupa

A água da chuva não te seca a roupa nem provoca a dor que te escorre do coração como um saltinho de pardal, bicada aqui, bicada ali, colhendo as alergias que se espalham com o vento norte e o pólen que ainda sobra das flores que resistem nos ramos longos das acácias. Tudo tem o seu tempo, exato e incerto, como os segundos caindo dos ponteiros dos relógios de cozinha a cada ano bissexto, mais um dia no calendário de fevereiro, menor é o tempo necessário para a fritura dos bolinhos de bacalhau, transpirando ao verde aromático da salsa.

Os olhos meigos das crianças são amendoeiras em flor estendendo-se pelos penhascos à beira Douro, tão longos que vão para além da foz, até ao mar alto onde se afundam as inutilidades do dia a dia. E tu, descalça, um vestido de tule branco, caminhas sobre a espuma das ondas que se aquietam no horizonte como se te temessem o mau génio e a insegurança com que o vestes para se chegar à pia batismal, a receber o santo sacramento. Enquanto o dia nasce de primavera cinzenta de fevereiro e o sol se esconde à espera que o governo decrete a mudança da hora e ele possa recolher-se quando se calarem os sinos das igrejas.


Sozinho digo que é cara a electricidade produzida por chineses e, de repente, as linhas férreas enchem-se de comboios movidos a vapor. E surgem reedificados os lavadouros públicos sob o céu sombrio das Fontaínhas, com mulheres subindo a calçada da corticeira, carregando à cabeça molhos pesados de carqueja para atiçar os fogos de verão e assar as sardinhas pelo São João. Todas as máquinas eléctricas fabricadas na Coreia vão enchendo os depósitos de sucata que se multiplicam ao longo da avenida, sob o olhar impotente da vereação e do polícia de serviço.

26 de março de 2015

A faca não corta o fogo

A faca de Herberto Hélder não corta o fogo nem a morte sem mestre que não chegou a pousar nas estantes das livrarias, mas que se pode encontrar na feira da Vandoma, aos sábados de madrugada, na banca onde o espírito de Eugénio de Andrade a apregoa, em conjunto com a gata que lhe fugiu do poema e desistiu da intenção inicial de atravessar o rio Douro a nado para ir às provas de vinho fino nas caves da margem esquerda, e permanece em paradeiro incerto.

A faca da Deolinda serradora não corta o tronco do pinheiro, mesmo que se lhe tenha extraído toda a resina, com o fio rombo à falta de amolador, a quem roubaram a bicicleta e o apito, apesar da serradura espalhada pelo chão. Mas é óptima para cortar água, vento e sombras de paredes a que se acolhem cães vadios e sonhos que não couberam nos manuais de António Gedeão, enquanto este escrevia poemas químicos e orgânicos, só hidrocarbonetos e vapores de petróleo a infestarem o ar puro que respiramos, politicamente corretos nas palavras patrióticas dos deputados ignorantes e inúteis.


Por mim, reservei ontem um voo de baixo custo para Zurique, a caminho de Basileia, a tempo de apanhar o eléctrico em Claraplatz e chegar ao outro lado do Reno com os barcos descendo a corrente, tranquilamente navegando para Roterdão. E apanhar as bancas do mercado em Marktplatz cheias de flores exóticas e canivetes suíços, sem ferrugem na lâmina e uma cruz devota no cabo vermelho, à espera de uso. Capaz de degolar o voo plano de frangos virgens, de pescoço careca e passo inseguro. E ainda políticos na reforma, apoiados em bengalas, gozando os ares marítimos de Estrasburgo e o saldo  bancário de contas em paraísos fiscais nas ilhas das Caraíbas e no enclave da Madeira.

24 de março de 2015

Na desmorte de Herberto Helder

A morte que já não tinha mestre, ficou órfã. As tuas palavras únicas desceram do Pico do Arieiro, debruçaram-se sobre o Curral das Freiras, invadiram as ruas de Porto Moniz, incomodaram os corredores alcatifados do Palácio da Vigia onde um homem sem nome escolhia as cuecas com que se apresentaria no desfile carnavalesco, escondendo as ideias e as misérias, da cabeça e das partes baixas.

De repente deixou de haver espelhos de cristal, nem estilhaços sobram para que a diligência anónima de uma vassoura os junte a um canto deste ano de sol e vento, ainda sem flores naturais colorindo a vida dos jardins e as bancas do Mercado dos Lavradores. E bem que o foste dizendo, palavra atrás de palavra, em cada verso que escreveste, em cada livro que não reeditaste, em cada silêncio que se fez noite de lua nova, enquanto te mantinhas vivo e lentamente adormecias para a viagem.

Assim, de um fôlego, queria ser capaz de copiar-te o talento, aprender-te a sabedoria dos anos, dizer de enfiada todos os poemas que fizeste com que brilhasse a Fonte Luminosa e enchessem a arena do Campo Pequeno, onde não há placas a anunciar que é proibido fumar e os animais podem entrar livremente, lado a lado com os homens, pequeninos e ridículos, presos no meio de um par de cornos.


Depois escolher o ambiente seleto de uma tasca do Cais do Sodré, onde ainda se venda vinho a copo, e ler-te toda a Ode Marítima de uma forma que só tu serias capaz de ouvir e entender!

22 de março de 2015

Melancolia

Amanheceu um domingo triste de primavera, um sol medroso arriscando-se tímido no cinzento granítico das calçadas. O rosa das magnólias, frágeis e sem aroma, por breves dias vai projectar-se contra o azul quase limpo do céu, se não houver nenhum eclipse que o impeça. As pessoas transpiram uma calma aparente e falsa, que não carregam, e juntam-se às portas dos cafés a dizer mal dos vizinhos e dos amigos. Vestidas como se fossem para os empregos que ainda sobram, e algumas ainda assim se dirigem para a missa, a tomar a hóstia, fingir santificação e atentar contra o celibato hipócrita do padre, escondido sob o ar solene e rico dos paramentos.


Tudo parece calmo, e eu aqui sentado à mesa do café, meia de leite e um pão com queijo que me servirão de alimento durante todo o dia. À tarde vão faltar-me as forças nas pernas, irei cambalear e encostar-me às paredes ásperas e frias, tal como me faltam o ânimo e a vontade para escrever poesia num sítio virtual onde tudo é obra de arte. À minha frente um homem calvo, quase novo, usa brincos nas orelhas, tem os braços grotescamente pintalgados com tatuagens negras e vai colorindo apressadamente os quadradinhos de um caderno escolar de fazer contas, que retirou de uma mochila que depositou sobre a cadeira ao lado. Alinhada sobre a mesa há uma dúzia de esferográficas de cores diferentes, prontas para a chamada e aptas para a função. Cada quadradinho pintado é um Picasso que os museus correrão a licitar nos próximos leilões, um poema que Mário Viegas não teve tempo de dizer por morrer precocemente, uma prova dos nove que simplesmente não dá certo.


E ainda este vendaval de facas que é o teu silêncio, invadindo-me a cabeça como se fossem espadas desembainhadas prontas para a refrega. E o desprezo explícito que carregam, a escorrer-me pela face num ininterrupto fio de sangue com que se me escoa a vida no gume de uma lâmina com que me feri ao fazer a barba, logo pela manhã. Este sol sem brilho e sem vontade a que não sobra mar que se enfureça em vagas de sete metros, a desfazerem-se contra a imobilidade enganadora do molhe, só cimento e aço. E todas as perguntas que deixas sem resposta, e todos os longos silêncios que deixas vazios de palavras, e o telefone sempre pousado e quieto, esperando por um sinal teu que nunca chega. Enquanto te distancias e vais a caminho de um destino um pouco mais a sul!

14 de março de 2015

Manhã de sábado

Manhã de sábado, a rua, o passo inseguro e vacilante, as pernas bambas, o céu azul e um sol de março invadindo praças e travessas. Acordei cedo para o que é hábito do relógio que me dorme à cabeceira e escanhoei a cara, nem um arranhão. Minha mãe, à distância de mais de sete anos, haveria de gostar, sem dizer palavra. Mas o seu sorriso cândido, de mais de nove décadas, certamente lhe brilharia nos olhos e me chegaria à alma como uma carícia da sua mão magra e velha, como se pensasse que, assim, eu me pareceria mais com uma pessoa normal e menos com um salteador do século dezanove, escondendo-se às esquinas da noite, à espera da vítima.

Fi-lo também, e especialmente, por ti. Para poder sentir na minha pele macia o afago morno da tua mão pequena e frágil, sem nenhum queixume de que a minha face é uma seara de punhais maduros, prontos a ferir e a fazer-te correr as lágrimas sentidas que não desejas e a ver jorrar o sangue dos ferimentos, vermelho, azul, extracto de salsaparrilha, que sempre resultam das pontas afiadas dos punhais. E posto isto, aqui me quedo, deambulando perdido e sem destino pelos espaços que o sol vai abrindo à minha frente, como se fosse um vencedor, a coroa de louros soltando-se-me dos cabelos, uma qualquer medalha presa ao peito e encaminhando-me para a posteridade e para a história.


Dura a espera e este desespero denso que carrega, desde que a madrugada se fez anunciar na luz mortiça dos candeeiros eléctricos da iluminação pública. Um olho desperto preso à noite, que não morre, o outro pousado sobre o silêncio de um telefone, que não toca, o pensamento voando em círculos, à volta da tua ausência longa que já não tem medida nem diâmetro em que possa acomodar-se. Depressa o sol rumou a poente e foi perdendo altura, a perder-se nas águas frias do oceano, onde se perdem os sonhos de cada dia e a luz que os ilumina. Dele não fica mais do que o estertor final, esplêndido, antes de sumir-se na linha imaginária do horizonte. Na praia há apenas um banco vazio, sem corpos que se toquem e sem mãos que se dêem.

Sexta feira treze

Pronto, aqui estou eu, atirado de borco para um canto esconso desta sexta feira treze, que meio mundo teme e outro meio simplesmente ignora. Não sonho superstições e aqui estou tal e qual como resultei dela e de muitos outros dias e circunstâncias. A desesperança não tem época certa nem obedece a calendários, mas são as pessoas que deixam o sol refugiar-se para lá da linha do horizonte e que ainda mais adensam o nevoeiro cerrado de alguns dias de inverno  que trazem um sol frio atrás.

Nunca se tem aquilo que se procura, a sucessão de dias é uma roleta sem controlo que por capricho pára quando quer e onde quer, ignorando toda a vida que há em volta. Não me lamento de estender uma mão e de não receber outra, os dedos ávidos de encontrarem os meus e de se entrelaçarem maduros de carinho e de ternura. Se assim aconteceu, assim  está certo e, recordando o slogan de O’Neill, há mar e mar, há ir e voltar. E se por um capricho de um lado e um equívoco de outro eu não voltei, as profundezas do oceano darão destino aos meus destroços, seja em que sexta feira for.

Não me fica nada a não ser a mágoa e a amargura em que se foi edificando o vazio dos meus dias. Correm-se sempre grandes riscos quando se acredita em contos de fadas, povoados de Cinderelas e sapatinhos de cristal. Mas também fica sempre, para além dos cacos do cristal, no fundo deste coração cansado, o poema de António Gedeão que Manuel Freire fez mais hino que canção. O sonho comanda a vida!


13 de março de 2015

É tão longo este silêncio

É tão longo este silêncio como os teus dedos esguios que acariciam os ventos sem direcção que descem das montanhas nas noites de lua cheia. Atravessa o tempo, e cada minuto dele, com o rigor de um relógio de cuco a que não deram corda e a que sobrou inércia para se imobilizar, quieto e calado, sem anunciar manhãs. Desde há três dias que conto esta ausência pelos dedos e que sinto que me faltam dedos para te fazer presente e sentir o hálito fresco a hortelã pimenta enchendo o sorriso que te sobe pelo rosto quando ris por perto e alegras todo o espaço em volta das árvores ainda nuas onde desponta a folhagem.

Não há razão para que não sobre aquele perfume suave da flor de tília para estes dias que ainda faltam para que o verão se espalhe pelas praias e navegue pelos bosques que não temos. Porque sem ti há só vazio e falta, nem verão, nem praias, nem árvores, nem barcos no horizonte, procurando a barra e o abrigo do porto. E a esta hora da madrugada cresce-me a insónia, só por adivinhar que não há sonho que te faça vir pelo encoberto da noite, envolta na neblina de que se vestem os candeeiros que dão alguma luz às ruas da cidade e um nevoeiro cerrado para o regresso heróico de D. Sebastião, mesmo que este venha no bojo lúgubre de um navio.


Estão por inventar as palavras e os gestos com que se façam as despedidas, doces e solenes. Não chegaram as letras do alfabeto para as construir e as sílabas foram tantas que não se libertaram da garganta, deixando imóveis os lábios finos, sem cobertura de nenhum baton. Não há vocabulário que se escape dos dicionários e que se adapte às circunstâncias de que o momento se vestiu. As palavras e a falta delas seguem o mesmo trajeto, lado a lado, como linhas paralelas que se encontrarão apenas no infinito. Sem se saber a que esquina do tempo e do espaço elas se encostam à parede e se deixam escorregar para o chão, à procura de sossego e de descanso.

10 de março de 2015

Quando a tarde anoitecer

Quando a tarde desce, arrastando consigo o crepúsculo fresco destes últimos dias de inverno, apetece-me sentar-me contigo num banco de um jardim público, segurar as tuas mãos entre as minhas e prender ao esverdeado dos meus olhos o teu sorriso alegre e natural, como o sortilégio da floração única das magnólias, que hoje são flor e amanhã verde. Alisar-te os cabelos que uma brisa vespertina, vinda de norte, espalha pela praia, sem provocar ondas nem perturbar o descanso das gaivotas, morrendo na espuma branca das águas que o mar deixa perto e cedo.

Depois escrever-te uma carta, tão eloquente que dispensasse todas as palavras e todos os gestos. E fosse, mais do que isso, todos os muitos poemas de amor que Neruda e todos os poetas que ele não conheceu, tiveram tempo e inspiração para deixar gravados neste granito agreste que conservamos e de que Torga tanto se alimentou, inteiro e vertical, recusando convites, cargos e benesses carregadas no dorso desértico dos camelos, olhando a paisagem sublime do Douro do alto imponente dos penhascos, uma humilde ermida ao lado da paisagem.


Ser capaz de te perguntar coisas simples e fáceis a que ousasses responder, serena e tranquila, a sinceridade do teu olhar espalhando-se pela inquietação que se me agita nas meninas dos olhos e se perde para além delas. Dizer-te que gostar muito de ti não é mais do que sentir que te apeteceu dizer-me uma palavra, esboçares um gesto curto e subtil com que os amigos se sentam à mesa das esplanadas nos dias quentes de verão, enquanto as tardes anoitecem à volta de um por de sol que arde onde o oceano se faz vida. E razão para ela!

8 de março de 2015

Mulher apenas

Mulher é flor sem tempo, rosa perfumada de todas as cores, bela camélia caída no passeio, ser igual a todos os outros, sem necessidade de nenhum dia especial estabelecido por decreto, para hoje, amanhã ou depois. Mulher é o colo acolhedor e quente de minha Mãe, o seu regaço amplo e disponível, a sua mão leve nos caracóis do meu cabelo, o seu sorriso que me atravessa o corpo como uma carícia que não tem princípio nem fim, a sua compreensão para com todos os meus pequenos e grandes erros, a sua disponibilidade para todas as suas grandes e pequenas e permanentes ajudas.

Mulher é Mãe, minha Mãe enorme, sem dimensão nem época, o seu cabelo cobrindo-se de madeixas brancas, até exalar apenas um perfume branco sem origem e sem tempo, atravessando a eternidade, carregando sabedoria e sensatez, indicando-me o rumo, norte, sul, estrela polar, cruzeiro do sul, constelação brilhante, visível de qualquer hemisfério, sol da meia noite, luz de todos os dias, estação de todos os tempos, uma breve reprimenda de vez em quando, o meu regresso sem ressentimento ao perímetro seguro da aba das suas saias, um  afago, um beijo de ternura, um perdão que é privilégio de Deus.

Mulher és tu, coleguinha infantil da carteira ao lado da minha, um olhar eterno sob a franja dos teus cabelos, parceira de estudo, tabuada dos quatro, minha primeira namoradinha, exemplo acabado da intenção platónica com que te guardo na memória, o prazer que me dá ajudar-te a corrigir os poucos erros que deste no ditado, o romantismo com que a serenidade do teu olhar dobra o cabo Bojador, vencer as dificuldades das contas de dividir.

Mulher és tu, saia curta, andar juvenil, um brilho gaiato no olhar adolescente e penetrante, dando-me a mão, trocando um beijo furtivo num local escondido à luz do sol, sem jeito nem experiência, aceitando uma carícia tímida, desejando-a mais ousada, sonhando que se dobrem os curtos anos que faltam e te sobre a condição e a certeza de que és mulher inteira e completa, pronta a aceitar o amor e a esperança e a embalar nos braços um novo ciclo que se renova. Amanhã, de novo, serás Mãe. E continuarás Mulher!

6 de março de 2015

O verão na ponta dos teus dedos

Amanheceu um céu azul infinito, limpo de nuvens e de vento, caminho aberto para o paraíso que fica no aperto dos teus braços, bem para lá de onde gravitam as mais brilhantes estrelas. Um sol macio de ternura, ameno e doce, escorre-te lento pelos cabelos, pendura-te no olhar profundo e meigo um sorriso alvo de pureza, que os dicionários hão-de referir como sinónimo único de felicidade. E só será feliz quem puder ter esse teu sol nos cabelos e esse teu sorriso transbordando-te da alma.

É o tempo em que a primavera se anuncia, nas camélias dobradas que ainda florescem pelos jardins públicos e nos botões magníficos das magnólias que amanhã serão o deslumbramento da flor e, no dia a seguir, apenas pétalas caídas que nenhum aroma enfeitou e a que o piso irregular das calçadas roubou o derradeiro lampejo de nobreza, sangue azul ou título nobiliárquico, aristocracia de Paços reais, a resvalar pelas encostas e pelo sono das madrugadas.



Procuro o verão que se aproxima do teu corpo pequeno e frágil, a chegar-te temporão, o doce prazer da descoberta do caudal tranquilo de todos os rios que serenamente correm para o mar. Tenho-te na palma da mão, com todos os cuidados que requerem as peças do cristal mais puro da Boémia, há preciosidades que não pode sequer correr-se o risco de perder. Toco-te suavemente com a ponta insegura e trémula dos meus dedos e encontro o fogo ardente que crepita na tua mão segura e ágil que percorre o carreiro sempre novo para o monte. E que, naturalmente, chega ao cume e sente o prazer único da conquista e da vitória, como se cada vez fosse a primeira vez. Cada escalada é única e é primeira!

1 de março de 2015

Paisagem de domingo com gralha ao lado

Domingo chuvoso e triste, um nevoeiro fino e persistente a saber a inverno, que te humedece os cabelos e que vai parando nos semáforos, à espera do verde do sinal. Trago-te presa ao telefone, a saber que tempo te faz no quarto, onde te mantens no quente dos lençóis, esperando pela primavera e pelo verde da folhagem na ponta dos ramos dos plátanos centenários.

Resta o jornal, só desgraças e a sabedoria única do Vasco, que não vai além das Portas de Santo Antão, que não existem na invicta, onde até a humidade cheira a porto vintage e sabe a aguardente vínica, o rio lá em baixo, a recordação de Torga debruada no contorno granítico dos penedos.

E fica ainda o café ao lado, atafulhado de mesas onde não cabe ninguém, o pão nas prateleiras aguardando as encomendas e o saco de plástico que o governo vende patrioticamente a dez cêntimos cada um, para bem do povo e prosperidade da Alemanha.

E a gralha na mesa ao lado, uma idade indefinida de alguns duzentos anos, chegada da missa, com a boca ainda a saber-lhe a hóstia e o terço vulgar enfiado no pulso. A língua solta e o conhecimento vasto e variado, que sabe tudo e que se não cala. A miúda sentada à sua frente, muda e calada como uma parede de granito de quatro séculos e três metros de espessura. De medicina, lexotans e benurons, tens de ir ao médico, não podes usar os óculos que a tua mãe deixou quando morreu, podem ser fortes ou podem ser fracos.

O teu avô pu-lo fora do quarto, morreu numa pensão de Campanhã que nem sei onde é, mas nunca mais o deixei voltar para casa. A tua mãe é que foi dizer-lhe que estava grávida de ti, a puta, e diz a palavra solenemente, enquanto se benze. Conheceu três homens, teve um filho de cada um. Eu que vinha tão bem da igreja, devias de ir à missa também, devias ficar melhor de aturar, chego ao pé de ti e não posso aturar-te, vou dizer ao médico, não há lexotans que me cheguem, as dores de cabeça que já me fizeste. Mas vou para casa, apetece-me comer melão e tenho um em casa, casca de carvalho que comprei ontem, está no frigorífico, mesmo que eu não tenha luz. Estúpida, anda embora mulher, vai vestir um casaco, ainda lá tenho muita roupa tua para lavar, a dona do quarto não quer lá sacos, não volto para lá, ela quer é os duzentos euros.


E a rapariga de pé, sozinha, virada para a parede. Impávida, estúpida e serena. A gralha já na rua, de guarda-chuva aberto, à espera que abra o verde do semáforo, no meio do nevoeiro ligeiro e persistente.