22 de dezembro de 2013

Duas palavras

Para representar o infinito basta um símbolo. Para chegar além dele chega um conjunto simples de duas palavras. Da conjugação delas decorre o sentimento com que as acolhemos, o peso com que nos esmagam. Por exemplo, “Minha Mãe”! A génese perdida na origem de todas as coisas, antes de todas as coisas, todos os animais e todas as plantas. Sem mares, sem rios, sem oceanos, sem florestas e sem seres que pudessem povoá-las. Mãe, só uma palavra e o mesmo peso do símbolo que representa o infinito, todo só dela, repleto, cheio, sem nenhum espaço vazio para acolher o mais pequeno pensamento. Minha, um outro infinito para além dele próprio, sem fronteiras que limitem o conceito, sem conceito que possa adaptar-se-lhe. Quantos anos de luz percorrendo galáxias, revolvendo todos os sistemas solares que possam imaginar-se, noite e dia sem interrupção, anos e anos contados à velocidade de uma fração de segundo. E as duas palavras sempre além, sempre maiores, mais extensas, mais delicadas, mais absolutas do que a imaginação.


Por exemplo, “Meu amor”! Um desafio abstrato que se lança no vazio, zero absoluto, todo o espaço para preencher, o que é cada um de nós capaz de dizer. Tudo, para chegar a nada, só palavras, gestos, carícias, o peito em brasa, a paixão irracional por falta de limites, ano bissexto e o coração batendo sem compasso, adolescência, descoberta, caminho marítimo para a Índia. Dá-me a tua mão e com ela, nos teus dedos finos, todas as rotas perfumadas do aroma da canela. Nas tuas unhas a elegância fugidia do cravinho, tempêro dos dias cinzentos em que afago a solidão do inverno. Um beijo longo, tão longo que nem se dá por ele, uma eternidade que nunca acaba metida num repente que os mais precisos relógios não conseguem registar. E se o registassem, nenhum olhar seria capaz de alcançar, voo plano a uma velocidade que nada atinge, cometa transbordando pelo leito de todas as órbitas, oceano líquido de todos os sentidos.  Só meu, inteiro e todo, como o universo que fica além daquele que é nosso, cem vezes ele!


Quaisquer duas palavras, sejam quais forem, carícia estreita, Evereste de ternura, a profundidade mais funda do Pacífico. Adorei, beijinhos. Gosto tanto. Que delícia. Bela música. Poema intenso. Ácido clorídrico. Ano bissexto. Quarto crescente. Via aérea. Mar Egeu. Porto Santo. Santa Helena. Nelson Mandela. Aldeia Nova. Douro Litoral. Sardinha assada. Última ceia. Nova Lisboa. Jesus Cristo. Maria Bethânia. Minha namorada. Chuva oblíqua. Alberto Caeiro. António Gedeão. Pedra filosofal. Duas palavras simples, o registo linear, a memória para sempre, tempo sem nenhum esquecimento, nada a apaga. A memória não tem idade, não cabe no bolso do casaco nem na segurança das muralhas. Não se derruba com o auxílio de cruzados, porta aberta para a conquista de Lisboa, corpo atravessado na ferrugem ainda metálica dos gonzos, castelo de São Jorge com o rio Tejo na paisagem. Só duas palavras, e como bastam!

21 de dezembro de 2013

Amor

Amor é uma palavra de quatro letras a que faltam todas as outras, minúsculas, maiúsculas, sinais de acentuação, acordos ortográficos, dicionários, enciclopédias. Um labirinto de carreiros na profundidade líquida dos teus olhos, calor, quarenta graus, solstício de verão, inspiração, transpiração, o mar chão, a água muito salgada, a caminho dos trinta graus. Árvores frondosas num jardim público, um banco à sombra, as mãos dadas hoje, começo oficial do inverno, o presépio erguido no adro da igreja, os plátanos de braços nus, levantados numa prece, só promessas. O coreto vazio, tudo gente em volta, o choro arrastado de um saxofone rompendo o escuro da noite, melodia breve, a luz tombando dos candeeiros de iluminação, o som ruidoso dos aplausos que não há. Tantas palmas, chuva oblíqua!


Quatro letras por qualquer ordem, sem ordem nenhuma, alinhadas em qualquer sentido, dispersas, sem alinhamento, sólidas, voláteis, gás raro, oxigénio, falta de ar, a altitude a que voam as cegonhas que nos trazem o sonho de tão alto, para lá das nuvens. As manhãs sem nevoeiro, o frio ausente, regresso adiado, torrente vulcânica confluindo num desfiladeiro de ternura, o sol que aquece. Barco à deriva, nau catrineta, arriba arriba gajeiro, vento norte, todas as velas pandas, caminho da Índia, o Brasil descoberto por engano, paixão e drama, tragédia, Inês de Castro, quinta das lágrimas, o rendilhado de um túmulo no mosteiro de Alcobaça.


Amor sólido, líquido, gasoso, vegetal, milho, trigo, cultura de sequeiro, regadio, toda a água do lago de Zurique, a vertigem no cume do Matterhorn, neves do Kilimanjaro, verdes colinas de África. Arrepio na espinha, a queda livre do trapézio, o lombo contra  o frio do lajedo, calçada do quebra costas, a falta de rede, o risco. Aves de arribação, porto de chegada, barcos de longo curso vindos do polo sul, escorrendo pela barra dentro até ao cais, marinheiros, ode marítima, um roteiro lisboeta de Pessoa, Brasileira do Chiado  em flagrante delitro, cartas ridículas escritas a Ofélia!

16 de dezembro de 2013

São os “númaros” estúpido

Portugal nunca foi um país, nem antes do Afonso Henriques. Foi assim um sítio encavalitado no promontório de Sagres, prestes a despenhar-se e sempre pronto a dar um passo em frente. Hoje é um sítio em vias de extinção, como o lince da malcata e os patriotas de Boliqueime. Quando mais perto esteve de ser país foi com o senhor Durão Barroso, um sósia de Miguel de Vasconcelos na defesa da causa pública, mas por quem o lajedo da Praça do Município ainda espera. Que nos garantiu um país com letra pequena, depois com letra grande, depois remediado, depois rico, depois muito rico. Até chegar ao primeiro lugar da lista ordenada dos países mais desenvolvidos do mundo, também conhecida por “ranking”. O paraíso ali mesmo ao lado, na ilha da Pessegueiro, ao alcance de uma canoa escavada num tronco de eucalipto. E que, à semelhança do que o senhor Cristiano Ronaldo fez com o Real de Madrid, assinou contrato com a senhora Merkel, na defesa do interesse nacional e do leão endémico da  Madeira, excluindo o senhor Alberto João, com ou sem poncha, no copo ou no bucho.


O sítio em vias de extinção, com a mania das grandezas, deitou-se a descobrir mundo, a levar a fé na ponta da espada e a trazer cominhos para tornar mais apetitosas as tripas à moda do Porto. Depois acabou a perder o que descobrira, a andar à deriva no caminho de regresso e a comprar os cominhos e os tomates aos vizinhos espanhóis. E a aprender estatística que lhe serve para tudo. De causas inúteis e perdidas, como a governação, até questões de superior importância, como o futebol e a posse de bola, na linguagem dos especialistas dos relvados e do pontapé na bola. É a ditadura dos “númaros”, sufragada uma vez por outra, à maneira que já de certo modo fazia o senhor Salazar, que jaz morto e arrefece, algures onde nunca aquece.

Os “númaros” servem para definir a fronteira da pobreza, por exemplo, trezentos euros. Uma moeda antes e é-se pobre, procuram-se restos de comida nos contentores, recolhem-se farrapos pelas esquinas, espera-se por sapatos sem solas e sem atacadores, deitados para o lixo, mais dignamente designado por resíduos sólidos, e cuidadosamente depositados à porta do vizinho. Uma moeda depois e é-se rico, o conforto da classe média, tão certo como cinco ser o resultado da divisão de dez por dois, mesmo sem máquina de calcular e sem tabuada. O almoço de domingo feito num restaurante do concelho ao lado, o passeio semanal à beira mar para ver a altura das ondas e o tamanho da sardinha. As férias numa ilha de Cabo Verde, esquema viaje agora e pague depois, vinte e quatro prestações sem juros e sem comissões, tudo já incluído no preço e nos pacotes da Agência Abreu. Nem moeda antes, nem moeda depois, trezentos euros exatos. Uma situação indefinida, um pé no degrau de baixo, o outro pé no degrau de cima, uma espécie de hermafrodita, com a mesma facilidade se é homem, se é mulher ou se é nem uma coisa nem outra, bem pelo contrário.

O sítio em vias de extinção tem uma vocação inata para a tragédia e está talhado para a desgraça. Como coisa menor a sua governação é confiada a gente menor, que ou não foi à escola ou de lá fugiu, cravejada de títulos, de pedras preciosas e de ignorância cheia de cifrões. Mas que nunca embarcou num cacilheiro para ir à margem sul, não sabe onde fica o concelho do Fundão, fala francês como o jovem Mário Soares e apregoa que o crescimento económico foi, no trimestre anterior, o maior na União Europeia, uma espécie de mafia dos tempos modernos que passa pela Bélgica em vez de passar pela Sicília. O governo embandeira em arco, a maioria aplaude na assembleia, o público canta o Grândola nas galerias, o senhor Portas autoriza o senhor Coelho a ir dizer banalidades à casa dos segredos. É a reforma do estado e da senhora Esteves. E o rigor dos “númaros” ó estúpido!


13 de dezembro de 2013

Cais deserto

Numa estação de caminhos de ferro há um cais deserto que se prolonga muito para lá de onde o olhar alcança. Um cais deserto é sempre a ansiedade de quem espera, as lágrimas de quem fica, a solidão da distância a que mora a ausência de quem parte. Geometricamente as linhas a perderem-se para além da curva do horizonte, marcando encontro com o infinito, para além do sonho e da esperança., onde fica o paraíso e onde todos os encontros, finalmente, são para tudo e para sempre.

Um cais destes, deserto de pessoas e de comboios, sem o ruído metálico das rodas travando nos carris, e sem os passageiros apressando-se com as bagagens, é um fascínio doloroso que não cabe em nenhuma fotografia, por mais extenso que possa ser o papel e abrangente a objetiva. Os dias soalheiros, mesmo de inverno, ainda que seja noite, podem trazer a esperança à ansiedade de quem está e de quem espera pelo comboio que chega e pela pessoa que desembarca com o passo seguro de quem trás destino certo e o olhar sereno, cheio de promessas e do verde permanente das colinas.


Quem se apeia pode trazer no sorriso o brilho luminoso dos dias claros, a primavera florescendo nos cabelos com uma manhã de sol, os dedos das mãos prontos para a ternura, o passo firme e curto ajustado aos grandes percursos que, sem pressa, se fazem pela vida fora. A sua presença, de repente, enche a solidão do cais de lés a lés, de azáfama e movimento, vida, embarques e desembarques, uma só pessoa a submergir o silêncio, a empurrar a desesperança para além de onde os comboios nos fogem do horizonte.


Para lá da porta da estação fica um outro mundo onde, a dois, sob a iluminação deserta das ruas frias, se constrói a certeza do futuro imediato, se dão as mãos e se partilham sonhos e desejos. Enquanto pelos dias longos de verão se trocam prendas e se fundem corpos, certezas de marés cheias e águas mornas, como se a solidão do cais já não sobrasse para nenhuma despedida. O mar é como o sol, a praia coalhada de gaivotas tendo-o na ponta dos bicos: quando nasce, é para todos.

3 de dezembro de 2013

O sucesso do arremesso do calote para os incobráveis

O país regurgita hoje um incomensurável orgulho nacional, como se tivesse voltado a conquistar Lisboa aos mouros ou reconquistado Olivença aos espanhóis. E tal foi o facto ímpar e o sucesso com que, na erudita linguagem dos ministros, dos secretários de estado e dos apresentadores dos telejornais, se conseguiu trocar uma dívida por outra. Ou, para que se entenda, não pagar uma dívida que se vencia e esmolar aos respetivos credores que condescendessem em receber dois ou três anos mais tarde, cobrando o calote e os juros relativos ao período adicional.


O sucesso foi tanto que a própria ministra, aquela dos swaps e de aspeto meio muro de Berlim, declarou que o aumento do prazo se não fazia por falta de dinheiro. O que, desde logo, faz crer que terá sido por excesso dele. O que calha perfeitamente com aquilo a que o Dr. Cavaco e o presidente da junta da Reboleira denominam de economia global. Quanto mais dinheiro se tem, pior e mais tarde se paga, ou não se paga mesmo e invoca-se a crise. Como fazem os bancos, o Continente e o senhor Amorim, que vale em barras de ouro mais do que o seu peso, e tem aspeto pesado como um lenhador finlandês!

A história pátria está cravejada de sucessos como se fossem diamantes, a começar por Álcacer Quibir onde parece que o efeminado D. Sebastião ainda anda, de calções, a correr atrás da moirama, a ver se lhes dá cabo do canastro. Ou de qualquer outra parte, mesmo pudibunda, que lhe venha à mão. D. Pedro IV, soberano português dos quatro costados e das vértebras cervicais, proclamou a independência do Brasil, de que foi coroado imperador. O exército português, numa desproporção mais longa do que o dízima infinita do valor de pi=3,14159 26535 89793 23846 26433 83279 50288 41971, ridicularizou o numeroso exército indiano, assobiou para o lado, sacudiu o pó do uniforme e regressou triunfante ao cantinho luso de Monção, a ver no que dera a colheita do alvarinho.

Portugal, definitivamente, é um sítio – como dizia o senhor Eça, da Póvoa de Varzim! – talhado para o sucesso, para a corrupção e para um destino irrevogavelmente marítimo, povoado de submarinos, navegando Douro acima, até Barca de Alva, sob o comando daquele rapaz do palácio das laranjeiras, vestido de marinheiro! Que, se o deixarem, há-de irrevogavelmente levar os submarinos até ao alto da serra da estrela!
   

1 de dezembro de 2013

A desrestauração

Finalmente um governo patriota e determinado tem perseguido, activa e insistentemente, a limpeza dessa nódoa da história nacional que é a restauração nacional de 1 de Dezembro de 1640. Em primeiro lugar foi eliminado o feriado nacional que era reservado à celebração da data. O que, mais do que lógico, é útil e proveitoso. Porque não cabe na cabeça de ninguém celebrar o que não existe e porque nada justifica que a banca prescinda de um dia de trabalho dos calaceiros a quem dá emprego remunerado principescamente. E, para as dúvidas, ainda para aí anda o engenheiro Jardim Gonçalves, pronto a atestá-lo, desde que lhe paguem as despesas de deslocação.


Miguel de Vasconcelos, ao que consta atirado de uma janela do Palácio da Ribeira abaixo, foi muito justamente reabilitado sob o suposto nome de Paulo Portas, de forma irrevogável e definitiva. Primeiro como ministro não sei quê dos estrangeiros e depois como vice-ministro das laranjeiras, sob os aplausos unânimes, e de pé, dos ministros das motorizadas e das cervejas. A duquesa de mântua foi igualmente reabilitada, homenageada com o nome numa travessa de Aguada de Cima – que não tem culpa nenhuma! – mesmo ao lado do Vidal dos leitões e premiada com quatro meses de licença de parto pelo seu contributo para o aumento dos índices de natalidade e pelo evidente sentido de estado do milheiral.

Dom João IV foi desqualificado como Lance Armstrong na volta à França, por uso de métodos proibidos e devolvido ao seu palácio de Vila Viçosa, terra que o acolheu a contragosto e lhe arremessou alqueires de tomates maduros ao coche que o transportava, proferindo impropérios e insultando-lhe a família. Tudo sob o suposto nome do rural Cavaco Silva, nascido além fronteiras, nos reinos do Algarve, e contando no currículo com duas idas ao reino de sua majestade para levar encomendas de vinho fino, destinado a umas jantaradas na moradia de Buckingham.

Passos Coelho, sem enquadramento zoológico adequado, foi transitoriamente devolvido a Massamá a bordo de um automóvel topo de gama, em trânsito para Bruxelas. Onde, a mando da senhora Merkel e da troika, defenderá com unhas e dentes, carro de serviço, cartão de crédito e um sofrível salário de alguns 50.000 euros, o interesse nacional, o pagamento não se sabe de quê à EDP e a venda alegre, e a preços da feira da ladra, de património nacional como a Ana e os CTT. Os compradores receberão ainda, a título de reconhecimento pelo indefectível patriotismo, os estaleiros de Viana do Castelo, o Banco Privado Português, os Drs. Oliveira e Costa e Vale e Azevedo e, ainda, umas desprezíveis centenas de milhões de euros.

Está a caminho a salvação nacional e a soberania sobre a ilha do Pessegueiro, para onde já foram mandadas marchar quatro praças, dois sargentos e seis oficiais generais. Em Coimbra, Dom Afonso Henriques auto-exuma-se. De orgulho!