30 de janeiro de 2007

O referendo

Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?


Segundo os jornais começa hoje, oficialmente, a campanha para o referendo de 11 de Fevereiro. Aquele em que os portugueses, maiores de 18 anos, obrigatoriamente recenseados, responderão sim ou não, pelo infalível método da moeda ao ar, a uma pergunta curta, simples, directa, de fácil interpretação que diverte miúdos no segundo ano de escolaridade e revolta virgens beatas de 80 anos que nunca se acolheram em nenhum convento nas proximidades da paróquia.

A pergunta foi aprovada por sacrificados deputados, convictos do sentido patriótico das suas funções e da natureza ridícula dos seus honorários. Alguns, por menor convicção, até votaram contra, mantêm o propósito de votar não e escrevem artigos nos jornais como o Dr. António Pires de Lima que garante nunca ter abortado e, mais do que isso, saber a pergunta de cor e salteado, embora sem lhe perceber muito bem o sentido. E defende, seguramente, que razão tinha o deputado Morgado quando proclamava, alto e bom som, que o acto sexual era para fazer filhos enquanto exibia, orgulhoso, o seu rebento varão, alto e espadaúdo, como foi o Dr. Marques Mendes duas ou três encarnações atrás. Enquanto a D. Natália Correia, Deus a tenha no seu eterno descanso, escreveu poemas épicos, disse-nos no S. Carlos, frequentou tabernas, tascas e botequins, bebeu demais, fumou desalmadamente, diz-se que passou a vida no truca-truca e para quê? Onde está a descendência?

A pergunta, de resto, é uma epopeia, um poema cuja paternidade, sem interrupção nenhuma, poderia pertencer ao Dr Graça Moura ou, mais modestamente, ao senhor Manuel Alegre. Ambos poetas pela universidade clássica e deputados por acidente e nas horas vagas, sendo um fervoroso adepto do Benfica e não se conhecendo ao outro inclinação clubista que se aproxime do vermelho, para além do laranja. Mais do que isso, é uma das mais finas e heróicas ilustrações do senhor José Vilhena, toda de mamas de fora e cuequinhas de renda como as sopeiras de antigamente, a que os patrões, à socapa e nos cantos escuros dos corredores, levantavam as saias e apalpavam as nádegas. E que, sabendo a senhora ausente, de visita à mulher do governador civil ou entregue à solidariedade de uma venda a favor dos pobrezinhos de espírito, seriam mesmo capazes de a atravessar na cama do quarto nas águas furtadas e de lhe por as calças em cima. Obviamente sem a mesma convicção com que o já referido deputado Morgado fabricou o herdeiro.

A pergunta é um texto do libertino senhor Luís Pacheco, uma anedota de salão dita pelos humoristas cultos que o país não tem e que o povo não percebe, uma ode triunfal que ainda cheira ao bagaço das tabernas onde Fernando Pessoa bebeu até à cirrose e ao mosteiro dos Jerónimos. E se este se não pronunciou sobre o assunto foi porque não ia à missa e a Ofélia lhe não deu autorização para que saltasse pela janela, para dentro do seu quarto e para cima da sua cama. A pergunta contribuiu para superar a crise económica e para levar o ministro a respeitar o código da estrada. Há excursões que se fazem a S. Bento só para tocar as pedras do hospício onde tal coisa, sem aborto e sem cesariana, foi parida. Viajou para a Índia na bagagem do Dr. Cavaco, ornamenta os ramos das árvores que ele plantou e que, à falta de rega, secaram. Faz parte do farnel da comitiva que o engenheiro Sócrates levou de passeio até à grande muralha da China, está à mesa de cabeceira do Dr. Soares, à espera das próximas eleições presidenciais e da extrema unção. Como a Toyota, veio para ficar. E ficou mesmo!

18 de janeiro de 2007

A silvicultura

Por deformação ou desvio psíquico, valha-me Deus, acredito tanto nos políticos como em historiadores como o Dr. Pacheco Pereira ou em professores universitários como o Dr. Prado Coelho. Mas, provavelmente por muito maior deformação, acredito sem restrições ou constrangimentos nas políticas delineadas por este intelectualizado grupo de eméritos programadores de um país maltrapilho e analfabeto, que manda o Dr. Cavaco à descoberta da Índia onde, pelos vistos, o mesmo se dedica à silvicultura e planta árvores.

Pessoalmente elevo os olhos para lá dos mais altos cirros e agradeço a Deus sempre que uma pomba, em plena rua de Santa Catarina, me sobrevoa e, com vossa licença e o perdão do Altíssimo, me caga no cocuruto da cabeça. Seria de facto muito pior se as vacas voassem e se, por razões de mercado, andassem aos preços de saldo na mesma zona: o tamanho da bosta seria bem maior. E o impacto, necessariamente, bem mais trágico!

Dois dias atrás o primeiro ministro anunciou que o país seria diferente daqui a sete anos, depois de uma coisa que, segundo as normas do simplex, designaram por QREN. O que, obviamente, nem seria preciso. O país, de facto, muda a cada instante. Invariavelmente para pior, inevitavelmente para o nosso bem e para um melhor futuro dos nossos filhos. É isso que me conforta, é isso que patrioticamente - continuo a desconfiar do termo! - me anima a ir votar no referendo sobre o aborto. Mesmo que ainda não saiba se hei-de votar sim, se hei-de votar não ou se hei-de até votar nim para contemplar a erudição e a clareza das explicações adiantadas por homens que, por mera questão de privacidade pessoal, não revelam se já terão ou não abortado na vida.

Aníbal, nome fictício, é pensionista, candidato vitalício a concorrente do Preço Certo e, uma vez por outra, participante nos questionários da Marktest sobre a gripe das galinhas, a utilização dos radares nas ruas de Lisboa e as vantagens que ao país traria a reconquista de Olivença, nem que fosse pela força! Sendo fictício, não tem nada a ver com outros anibais que possam flutuar pelo mercado, detentores de quatro pensões de reforma, dois empregos a tempo parcial, quatro carros de serviço e trinta e cinco assessores, além de uma casa prefabricada para férias e um lugar para montar tenda no parque de campismo da Boca do Inferno.

Aníbal, nome fictício, é pensionista da Caixa Geral de Aposentações há cerca de quatro anos. Até hoje não beneficiou do aumento de um só cêntimo no valor da pensão, mas orgulha-se de, em contrapartida e apesar disso, nunca ter sido marginalizado nos aumentos dos impostos, da água, da electricidade e das portagens das auto-estradas. E nunca como este ano o governo e o orçamento do estado lhe elevaram tanto o orgulho pessoal e a auto-estima! O orçamento levou-lhe, patrioticamente, cerca de cinco por cento daquilo que recebia. E ele ficou feliz e tranquilo quando pensou, justificadamente, que os mesmos estariam a ser investidos na florestação da Índia...

14 de janeiro de 2007

Pimenta Machado

O país, entregue a um sábado de sol, morno e brilhante, nem quase se deu conta de que Pimenta Machado voltara ontem aos noticiários da rádio. Pimenta Machado esteve para o Vitória de Guimarães como D. Afonso Henriques tem estado para a nacionalidade: a título vitalício. Hoje, como se sabe, estão ambos a título póstumo! Com a diferença de se não saber se Pimenta Machado algum dia terá batido na mãe, embora a ama que se ocupou dos seus primeiros passos o classifique como brilhante em tudo, até na aprendizagem do catecismo. Depois o país habituou-se, com vossa licença, a não se admirar com coisas de merda. Que interessa lá o roubo, o peculato, a corrupção ou a pedofilia? Estivesse em causa a gravidez da D. Elsa Raposo, o anonimato do respectivo responsável, a lua de mel do Sr Paulo Sousa, o mandato, contrariado a exausto, do Dr. Madail e as coisas mudavam de feição!

Mas razão tem o governo e tenho-a eu próprio para arrasarmos a classe dos jornalistas. Sem formação, sem cultura, sem rigor e sem profissionalismo. Claro que nenhum país pode orgulhar-se de só ter Luíses Delgados na classe, o que seria como aspirar ao euromilhões após o décimo jackpot, ou mais. Bem prega o Dr. Pacheco Pereira, remunerado ou não, por imposição patriótica ou outra, mas este país não merece os heróis que tem. Por acaso será condenável que Pimenta Machado tenha contas bancárias na Suiça? Então ele será o único? Então não haverá suiços que as têm também nos bancos da baixa pombalina? Então não há até motoristas de táxi e respectivos tios, ou padrinhos, ou presidentes não sei de quê que também as têm?

Mais do que isso! Parece que Pimenta Machado deu instruções ao guarda-livros do Vitória de Guimarães sobre o valor a inscrever na contabilidade pela transferência do Sr Fernando Meira. Então quem deveria dar essas instruções? O roupeiro, um apanha-bolas? E ele era um verbo de encher? Um presidente para cortar fitas com o marinheiro Thomaz de idas memórias? Parece ainda que ele próprio definiu o valor da comissão que lhe deveria ser paga pelo serviço. Mais do que justa e, aliás, perfeitamente ridícula. Onde está o mal? Deveria ser presidente, entregar-se à causa e andar ali para encher pneus? Claro que não! A isso de encher pneus já nem o presidente do Benfica se dedica há uns anos: manda os outros!

Pimenta Machado é simplesmente um incompreendido. Como sempre foi e como o é também o ministro da saúde. Porque, de facto, Pimenta Machado é um herói, um presidente deposto, ou sem posto, que justifica uma estátua no Largo das Oliveiras. Porque o que fez foi apenas salvaguardar da sanha ameaçadora do orçamento do estado alguns milhares de euros, subtraindo-os ao espírito despesista dos ministros e dos seus assessores. E, mais do que isso, pô-los a salvo nos seguros cofres de um qualquer banco suiço. Então isso não é um acto patriótico, do mais puro e genuíno interesse nacional?

4 de janeiro de 2007

Justiça, civilização e selvajaria

Sem comentários, transcrevo de uma das páginas interiores da edição de ontem do Jornal de Notícias, ainda sobre a execução de Saddam Hussein, acto histórico que celebrou a imposição da democracia no Iraque e certamente levará à canonização de George W. Bush como quarto pastorinho de Fátima.

Quando estava para ser executado, Saddam propôs uma oração. Guardas reagiram com gritos de apoio a Moqtada al-Sadr, líder do exército de Medhi. Começam então os insultos.

Saddam (sorri) - É assim que mostram a vossa coragem como homens?

Guarda - Vai para o inferno.

Saddam - É esta a coragem dos árabes?

Desconhecido - Por favor implora-lhe que não. O homem está a ser executado.

Guarda - Viva Mohammed Baqui Sadr (pai da Moqtada al-Sadr e fundador do Dawa, partido de Nuzi al Maliki)!

Saddam - Maomé....

O cadafalso abre-se e Saddam cai para a morte com grande violência, deixando a frase a meio. O vídeo mostra o corpo pendente na corda, sem vida. Depois de retirado sem qualquer cerimónia, alguns homens dançam e cantam à volta do cadáver.

1 de janeiro de 2007

2007

O ano de 2006 partiu a noite passada como em anos anteriores têm partido todos os que o antecederam: como mais um vencido da vida. Por ele, à entrada, se perfilaram todas as demagogias e todas as esperanças balofas, arroladas nos manuais de uma qualquer surrealista ciência política. Como sempre, prometeu-se a abundância desbaratando recursos em projectos loucos e de loucos. Salientou-se a crise, invocou-se a capacidade que nunca houve, o método que sempre faltou. Com um estranho conceito de civilização e de justiça o ano velho pendurou pelo pescoço Saddam Hussein e exibiu-o horas a fio nas cadeias de televisão. Da mesma forma cruel e muito mais ética que, por falta de televisão, utilizou D. Pedro em relação aos assassinos confessos da sua amante.

O ano novo chegou, com todo o ministério patrioticamente entregue ao trabalho e à cadência do um, dois, três da valsa vienense. Tudo, como sempre se promete, vai mudar, ou vai mudando, ou mudou mesmo ao sabor das doze passas de uva e da taça de espumante. Do preço dos combustíveis, ao custo da electricidade, da avença do Dr Vitorino aos honorários do Dr Santana, do desapoio institucional do Dr Cavaco ao engenheiro Sócrates. Das portagens às contribuições estatais para a saúde dos que não têm recursos para a pagar. O governo, patrioticamente ainda, fomenta a coima e diz que aumenta a receita fiscal. O cidadão, portador de um qualquer cartão único com que se identifica, com que vota quando e em quem o deixam votar, com que conduz automóveis, mesmo à velocidade excessiva a que o ministro da economia voa em defesa da pátria, vê-se reduzido a um só número. De muitos dígitos mas primo, não divisível por coisa nenhuma e, mesmo que o fosse, não o seria certamente por uma boa causa ou por uma boa razão.

O único jornal diário cuja edição se não perdeu nas voltas do reveillon e ao ritmo do jive, enaltece a nomeação da Dra Maria José Morgado para presidente da comissão de arbitragem da liga de clubes, o major Valentim acha que o facto irá contribuir em muito para a subida dos preços do presunto de Chaves e o seu filho está convicto de que os atletas do clube de dirige por hereditariedade, irão aprender a andar de bicicleta mais depressa do que os porcos que poluem a ribeira dos milagres. Paralelemante anuncia que o governo fomenta a construção conjunta de creches para a infância e de asilos para os velhos. Enquanto isso não faz filhos e reduz quase a zero os índices de natalidade. Quanto aos velhos, esquece ostensivamente o que com eles aprendeu, rouba-os nas pensões de miséria e abandona-os em campos de concentração, esperando pela morte e pela hipocrisia do sermão do padre na missa de corpo presente. Enquanto emite portarias a promover a construção conjunta de lares e de creches, o que facilita enormemente o crescimento saudável dos velhos e a morte prematura dos jovens. Mais do que isso, facilita o recurso ao "outsourcing" - seja lá isso aquilo que for! - e a economia que resulta da utilização corporativa de factores logísticos. Doravante, a troco do rendimento disponível e do endividamento das famílias, será possível nascer, esperar, e morrer no mesmo local. Onde um magarefe dirigirá, cientificamente, estabelecimentos que o estado subsidiará miseravelmente e de onde limpará as mãos, invocando a sociedade civil e os interesses dos grupois Mello e Espírito Santo!